sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Como nasce um Estado

O movimento sionista, o caos instaurado em território palestino durante o Mandato Britânico e a matança generalizada de judeus ao longo da 2ª Guerra Mundial.

Basileia, Suíça. Agosto de 1897. Na entrada da sala de concertos do Cassino Municipal, uma enorme bandeira branca e azul tremulava, saudando os participantes do Primeiro Congresso Sionista Mundial. Concentravam-se ali cerca de 200 delegados de diferentes organizações, representando 20 países.

Um deles era o jornalista Theodor Herzl, judeu de origem austro-húngara. Ao final do encontro, Herzl escreveria assim em seu diário: “Na Basileia, eu fundei o Estado Judeu. Se eu dissesse isso em voz alta hoje, receberia como resposta uma gargalhada universal. Mas, se não em cinco anos, certamente em 50 todo mundo vai saber.” As anotações do jornalista se revelariam proféticas. Afinal, aquele congresso, que lançou as bases do sionismo político, havia traçado um plano concreto para a criação de um Estado judeu na Palestina – algo que só ocorreria de fato meio século mais tarde, em 1948.

O mais importante documento produzido durante o encontro foi o chamado Programa da Basileia. Ele previa que o sionismo teria como propósito central estabelecer um lar seguro para o povo judeu. Esse objetivo seria alcançado, principalmente, por meio das seguintes ações: a promoção de assentamentos judaicos de agricultores, artesãos e comerciantes em território palestino; a organização de todos os judeus em grupos locais ou gerais, de acordo com as leis dos países em que viviam; o fortalecimento do sentimento e da consciência judaica; e medidas para obter o apoio das grandes nações, necessário à concretização do plano.

<strong>Theodor Herzl (no centro) e outros integrantes do movimento sionista, que defendia a criação de um Estado judeu na Palestina.</strong>Getty Images

Àquela altura, Herzl já era uma das mais influentes lideranças do movimento sionista, cujo nome deriva da palavra sion (“elevado”, em hebraico). Também conhecido como nacionalismo judaico, esse movimento defende, desde a sua origem, o direito dos judeus de ter uma pátria na região que a Bíblia chama de “Terra de Israel”. O jornalista havia se convencido dessa necessidade três anos antes, em 1894, quando foi designado para cobrir o caso Dreyfus na França.

Naquela ocasião, um oficial do exército francês – o judeu Alfred Dreyfus – foi injustamente acusado de espionagem em favor da Alemanha. O julgamento, baseado em documentos falsos, acabou em condenação – um episódio visto por muitos como xenofobia e antissemitismo explícitos. Impactado pelo desfecho do caso, o jornalista escreveria em 1896 o livro O Estado Judeu, no qual sentenciava: “Se as nações escolhem não nos absorver, devemos construir nosso próprio Estado”. Era a fundação do sionismo moderno.

“É importante enxergar esse movimento não como um fenômeno isolado, mas como o resultado de um contexto muito mais amplo”, diz o historiador Michel Gherman, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O nacionalismo estava em voga em diversas partes do mundo, principalmente na Europa.” Era o que acontecia, por exemplo, na Itália e Alemanha, que se reunificavam e emergiam como poderosos estados-nações. “A diferença do sionismo é que os judeus pretendiam se estabelecer como nação em um local diferente daquele em que viviam, uma vez que estavam espalhados.”

Promessas ao vento

Desde o seu surgimento, o sionismo – com suas diferentes correntes – foi ficando cada vez mais forte e costurando alianças. Em 1917, o movimento ganhou um apoio importante: a Declaração Balfour. Enviada ao Barão Rothschild, líder da comunidade judaica do Reino Unido, pelo secretário britânico Arthur Balfour, ela assinalava a promessa do país de ampliar seus esforços para a criação de um “lar nacional judeu” na Palestina caso o domínio do Império Otomano sobre a região chegasse ao fim, o que acabou acontecendo durante a 1ª Guerra Mundial (1914-1918). Vencedores ao final do conflito, França e Grã-Bretanha fizeram o que se espera de potências colonialistas: dividiram o Oriente Médio entre si. Assim surgiram os mandatos – francês na Síria e no Líbano, britânico na Palestina e na Mesopotâmia. “Eles funcionaram bem em algumas regiões”, diz Gherman. “No território palestino, entretanto, as coisas não saíram conforme os britânicos haviam planejado.”

Em 1920, logo no primeiro ano de mandato na Palestina, um motim em Jerusalém já deixou claro que a vida dos administradores britânicos não seria nada fácil por lá. A revolta acabou com a morte de cinco judeus e quatro árabes, além de centenas de feridos. No ano seguinte, ocorreria outra revolta na cidade de Jaffa, com resultado ainda mais trágico: quase cem mortos entre árabes e judeus. Com os palestinos se sentindo prejudicados pelas promessas feitas aos judeus na Declaração Balfour e os sionistas cada vez mais impacientes, ansiosos pela criação de um Estado judeu, a situação foi se complicando. “Para a Grã-Bretanha, era difícil suportar a pressão e a violência dos conflitos”, explica Gherman.

Para Carlos Reiss, coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba (PR), a política adotada pelos administradores europeus nos anos seguintes agravou o caos. E o Mandato Britânico, apesar das promessas feitas antes, acabou se tornando o maior entrave para o plano sionista de um Estado judeu na Palestina. “Em 1939, o governo de Londres publica o Livro Branco e, quando a 2ª Guerra Mundial eclode, os sionistas se veem em um grande dilema. Eles não sabiam contra qual lado lutar.” O tal Livro Branco, entre outras coisas, postergava a criação de Estados independentes na Palestina e limitava a imigração judaica para a região, além de proibir de imediato a venda de terras para judeus. O resultado foi um aumento da insatisfação dos sionistas, que passaram a enxergar como inimigos declarados não apenas a Alemanha nazista, empenhada em dizimar os judeus, mas também a Inglaterra. “No fim, a guerra acaba adiando ainda mais o sonho da criação do Estado de Israel”, defende Reiss.

“E o pós-guerra fica sendo a grande chave para entendermos como esse Estado acabou sendo criado.”
Muitos historiadores entendem o extermínio de 6 milhões de judeus no Holocausto como o empurrão que faltava para Israel nascer. Reiss e outros especialistas, no entanto, relativizam sua influência na criação do Estado judeu (leia mais abaixo). “O que de fato acabou sendo determinante foi a Grã-Bretanha não aguentar a pressão e a onda de violência e entregar a decisão da partilha à recém-criada Organização das Nações Unidas”, diz Reiss. “A questão colonial e a maneira como os britânicos conduziram seu mandato são mais importantes.”

No entendimento do historiador Michel Gherman, a Grã-Bretanha sabia que a divisão da Palestina entre árabes e judeus era inevitável, mas não queria ser a responsável por aquela tarefa espinhosa. “Durante seu mandato, os britânicos cederam para os dois lados. Tentaram agradar tanto aos árabes quanto aos judeus, esperando que eles se engalfinhassem, para tirar proveito dessa situação mais tarde.” O problema, segundo o historiador, é que tudo fugiu ao controle dos mandatários.

Quando a decisão sobre a partilha da Palestina caiu nas mãos da ONU, a política sionista tomou a frente. “O sionismo trata de autodeterminação, de nacionalismo. E nacionalismo é algo múltiplo”, diz Gherman. “Sempre houve diferentes correntes sionistas, de direita e de esquerda, liberal e conservadora, cultural e religiosa… Mas todas elas tinham na criação do Estado judeu um objetivo comum.” Segundo o historiador, caberia a David Ben-Gurion, o mais proeminente líder da Organização Sionista Mundial àquela altura, o papel de arquiteto desse Estado. “Com habilidade, ele foi capaz de misturar e unir todas essas vertentes.”

Em 14 de maio de 1948, seis meses após a partilha da Palestina ter sido aprovada na ONU, o polonês e sionista socialista Ben-Gurion declarou a independência de Israel, tornando-se o primeiro chefe de governo do país. “Este é o direito natural do povo judeu, ser mestre de seu próprio destino, como todas as outras nações, em seu próprio Estado soberano”, dizia o texto da declaração. Daquele momento em diante, os judeus estabelecidos em território palestino passavam a ser israelenses.

GENOCÍDIO NAZISTA

O Holocausto tornou urgente a fundação de um país para receber os sobreviventes.

Afinal, o extermínio de judeus pelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial (1939-1945) teve ou não teve um papel determinante na criação do Estado de Israel? Para Carlos Reiss, coordenador do Museu do Holocausto de Curitiba (PR), o genocídio foi um fator dos mais relevantes, mas é um erro acreditar que houve uma espécie de compensação aos judeus. “Não foi um caso de benevolência, muito menos de piedade”, ele afirma.

<strong>Judeus em um trem que os levaria para um campo de concentração nazista durante a 2ª Guerra Mundial: mais de 6 milhões foram mortos no Holocausto.</strong>Wikimedia Commons

“A pressão sobre a ONU para dividir a Palestina em 1947 tornou-se maior em virtude do genocídio por causa dos sobreviventes, que precisavam de uma solução urgente por não terem para onde ir.” Reiss não está sozinho nessa avaliação. “A culpa e a simpatia que a maior parte do mundo sentiu após o Holocausto tiveram um papel secundário no estabelecimento do Estado de Israel”, defende Robert Rozett, diretor dos arquivos do Yad Vashem, o museu do Holocausto de Jerusalém. A pressão do movimento sionista, exercida de maneira coordenada e muito bem organizada, foi, para ele, o fator mais decisivo de todos – somado à violência que progressivamente tomou conta da Palestina a partir dos anos 1920. “Mais significantes para a fundação de Israel foram essas questões políticas.”


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