sábado, 16 de maio de 2020

Quando o coronavírus bate no peito

Não bastasse aquela lista clássica de cuidados com a saúde encorajados a quem já corre maior risco de atentados ao coração — equilibrar a alimentação, controlar o colesterol e a pressão, não fumar… —, uma nova recomendação despontou no horizonte: fazer o possível para evitar o contágio pelo coronavírus. Isso porque pessoas com doenças cardiovasculares são as mais frequentes vítimas fatais da Covid-19: elas estão presentes em quase 40% dos óbitos no país.

O cardiologista Bruno Caramelli, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), esclarece que não significa que esses indivíduos têm maior probabilidade de contrair o vírus, mas, sim, de enfrentar uma complicação da infecção. Estimativas apontam que entre 70 e 80% da população poderá ter contato com o Sars-CoV-2, mas a maioria não vai portar sintomas ou, no máximo, deve encarar um quadro leve.

“Para ter a doença, basta estar vivo e no planeta Terra”, brinca o médico, que pegou o coronavírus, apanhou das manifestações da doença em casa, mas já se recuperou.

O grande problema do patógeno é quando ele se junta a algumas condições preexistentes capazes de agravar as coisas. O Ministério da Saúde chegou até a definir um perfil da vítima mais provável para a nova doença: homem e cardiopata com mais de 60 anos.

Em relação ao sexo, embora existam pesquisas sobre a influência genética em curso, parece haver muito de comportamento envolvido. “Homens vão menos ao médico, cuidam-se menos e, em média, morrem mais cedo do que as mulheres”, aponta Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).

No que toca aos males cardíacos, o coronavírus pode ser a gota que faltava para o copo transbordar — e, quanto mais descompensado estiver o paciente, maior o perigo. “Se a pessoa tem uma insuficiência cardíaca, qualquer inflamação no corpo é como se fosse um grande estresse para o organismo”, ilustra o cardiologista Rogério Krakauer, do Hospital e Maternidade Christóvão da Gama, em Santo André, no ABC paulista.

“Mesmo sem atacar diretamente o coração, a doença afeta pulmões, fígado, rins… Com isso, o coração tem que trabalhar mais e às vezes não consegue.”

Mas não é só quem já encarou um infarto ou possui uma doença cardíaca instalada que precisa se precaver. A presença da hipertensão, que afeta um em cada quatro brasileiros e aparece com o envelhecimento, está ligada à maior gravidade da Covid-19. Acredita-se que a superinflamação que surge como resposta à infecção bagunce ainda mais a vida das artérias, já pressionadas.

O risco com o coronavírus, porém, também ronda pessoas com diabetes e obesidade, situações que atrapalham a reação das defesas frente ao Sars-CoV-2 e também são marcadas por um estado inflamatório crônico. Em comum, essas comorbidades, como os médicos as chamam, colocam o coração na berlinda.

Nesse contexto, muita gente com pressão alta ficou em dúvida sobre continuar a usar ou não alguns remédios que combatem a hipertensão. O receio veio à tona quando se descobriu que o vírus se conecta a um receptor na superfície das células que é o mesmíssimo alvo de uma classe de medicamentos anti-hipertensivos, os inibidores de ECA. Será que isso geraria ainda mais complicações?

“Até aqui, as evidências são frágeis para suspender a utilização. Falamos de medicamentos de uso contínuo cuja suspensão pode resultar em consequências sérias”, diz Queiroga. Ou seja, os benefícios consagrados superam eventuais riscos.

Números para saber de cor

Doenças cardiovasculares lideram o ranking de mortes no Brasil e complicam casos de Covid-19. Veja o tamanho do problema:

346 mil óbitos são causados anualmente pelos problemas cardiovasculares (infarto, insuficiência cardíaca…), segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia.

25% dos brasileiros que moram em capitais afirmam ter pressão alta, que pode piorar a evolução de uma infecção por coronavírus. A taxa sobe para 60% entre pessoas acima dos 65 anos.

37% das vítimas fatais de Covid-19 no Brasil tinham doenças do coração prévias. É o fator de risco mais comum, na frente de diabetes (29%) e problemas pulmonares (7%).

 

Ataques diretos e indiretos

Nas investigações para explicar por que os cardiopatas estão na linha de frente do perigo, um dos fenômenos que atormentam os especialistas é a chamada “tempestade inflamatória”. No afã de derrotar o vírus, o corpo se autobombardeia com uma tremenda inflamação.

Acontece que pessoas com doenças cardiovasculares — e hipertensos e diabéticos fora de controle também — já têm um organismo inflamado. Essa tempestade pode acarretar insuficiência respiratória e, como em um efeito dominó, descompasso cardíaco. É grave e UTI na certa…

“Apesar de menos frequentes, há registros de quadros com inflamação mais graves em que o pulmão não está voltando 100% ao normal. E é possível que isso também aconteça com o coração”, relata Krakauer.

Além dos impactos, digamos, indiretos no músculo cardíaco, uma agressão mais direta pode ocorrer: o vírus migrar pela circulação e infectar as próprias células do coração. É a miocardite, que, segundo relatos, surge em 7% dos pacientes hospitalizados. “Mas são casos raros e hoje não são o principal foco de atenção dos médicos”, pondera o cardiologista de Santo André. Comparando com outras complicações, a gravidade parece ser limitada.

O que preocupa bastante os médicos é que uma parcela expressiva de brasileiros tem um combo particularmente nocivo para o sistema cardiovascular. É aquele pacote de pressão e colesterol altos, diabetes, excesso de peso… Em condições normais de temperatura e pressão, ele já eleva o risco de infarto e AVC.

Com um vírus capaz de botar mais fogo (ou melhor, inflamação) nas artérias, o cenário não fica nada favorável. O que só reforça a necessidade de cuidar da alimentação, tentar se exercitar dentro do lar diariamente, checar a pressão de vez em quando…

E, claro, permanecer atento a sinais de que algo está errado ou não vai bem. “As pessoas devem ficar em casa, mas, ao se sentir mal, notar uma dor no peito, falta de ar ou palpitação, é preciso sair e procurar atendimento”, alerta Caramelli. Não dá para bobear com emergências. Essa situação, aliás, é um dos nefastos efeitos colaterais da pandemia. Segundo a SBC, muitos cardiopatas têm evitado ir aos hospitais com medo de pegar o coronavírus.

Negligenciando sintomas de um ataque cardíaco ou uma descompensação, podem morrer em casa. Não à toa, a entidade lançou há pouco a campanha “De Coração, contra o Coronavírus”. “Queremos informar com qualidade e eficiência a população e os profissionais”, resume Queiroga.

<span class="hidden">–</span>Ilustrações: Guilherme Henrique/SAÚDE é Vital

Nesse aspecto, é prudente ter cautela com o festival de notícias e conteúdos espalhados pelas redes sociais. Cuidado com as promessas de soluções fáceis, como chás e vitaminas, e até mesmo com o que sai rotulado como “descoberta da ciência”. “Em virtude da pandemia, existe uma demanda muito grande por respostas rápidas, e acabam saindo estudos preliminares ou inadequados”, conta Luciano Drager, diretor científico da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp).

Ele também se refere ao fato de, frente à crise atual, muitos experimentos e conclusões serem divulgados sem revisão dos artigos por pares e outros especialistas. De acordo com Drager, é essencial separar pesquisas com achados válidos daquelas com problemas de metodologia.

Na vigência de algumas incertezas, a orientação mais confiável em matéria de prevenção é ficar em casa o máximo que der e caprichar na higiene das mãos e dos objetos pessoais. O isolamento social é requisito para evitar uma superlotação e colapso do sistema de saúde, que não será capaz de atender pessoas que realmente precisam, inclusive as vítimas da Covid-19 e de emergências cardiológicas.

A outra recomendação básica é manter a rotina diária de atenção à saúde. “Indivíduos com hipertensão e diabetes controlados correm menos riscos do que quem não está medicado e controlado”, observa o presidente da SBC. Por isso, jamais suspenda remédios prescritos por conta própria. Na dúvida, fale com seu médico. Com esse novo inimigo invisível, o coração vai ficar mais sossegado se cada um seguir a nova lista de cuidados e não vacilar.

A receita da prevenção

Além de manter o tratamento médico em dia, alguns hábitos seguem importantes na pandemia para reduzir o risco de problemas cardiovasculares.

Alimentação equilibrada: priorize frutas, verduras, legumes, grãos integrais, peixes e carnes magras. Evite sal e açúcar e maneire na carne vermelha e nos produtos processados.

Atividade física regular: o ideal é reservar entre meia hora e uma hora por dia para mexer o corpo. Sem parques e academias, adapte o treino para a casa. Há aulas online.

Sono respeitado: procure dormir entre seis e oito horas por noite. Tão importante quanto a quantidade é a qualidade do repouso. Silêncio e escuridão ajudam. O sono resguarda o coração.

Estresse controlado: com a pandemia, já estamos naturalmente mais à flor da pele. Então busque práticas de relaxamento e respiração, atividades de lazer e, se preciso, apoio psicológico.


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