domingo, 17 de maio de 2020

A epidemia oculta: saúde mental na era da Covid-19

Ser jornalista que escreve sobre saúde tem lá seus perigos. O mais óbvio deles é uma espécie de hipocondria intermitente: achar que você tem os sintomas daquela doença sobre a qual está estudando para a próxima reportagem a ser publicada. Nesses dez anos de experiência na área, eu me sentia particularmente imune a esse fenômeno. Afinal, sempre tive uma vida relativamente saudável e não sofro de nenhuma condição crônica ou incapacitante. Mas tudo mudou em abril de 2020: durante o processo de apuração para esta reportagem, de algum modo senti e vivenciei muitos dos incômodos e frustrações que serão descritos nas próximas páginas. O sono não é reparador como antes. O cansaço me agarra cada vez mais. A incerteza sobre o dia de amanhã é apavorante. Enfim, a cabeça opera em outra frequência na era da Covid-19.

Convenhamos: vivemos tempos únicos. Até certo ponto, é esperado sentir-se mal, ansioso, com raiva, insatisfeito ou triste diante de tantos desafios que aparecem na nossa frente. Como mostra um levantamento com 4 693 brasileiros feito pela Área de Inteligência de Mercado do Grupo Abril, em parceria com a MindMiners, não estou sozinho nessa: 54% dos cidadãos estão extremamente preocupados com a situação da Covid-19 (você confere outros números da pesquisa ao longo da matéria)

Para entender melhor esse turbilhão de sensações que invadem a cabeça, resolvi procurar nos livros de história exemplos de crises do passado que poderiam ajudar a entender o que vivemos hoje. Será que existiu algum momento em que nossos tataravós passaram por uma situação similar? O primeiro exemplo que apareceu nas leituras e nas entrevistas foi a gripe espanhola, uma pandemia que, apesar do nome, começou nos Estados Unidos no ano de 1918, durante a Primeira Guerra Mundial. Soldados americanos levaram o vírus influenza para os fronts de batalha na Europa, onde a doença se disseminou para tudo que é canto e matou entre 17 e 50 milhões de seres humanos. 

Mas essa não é uma comparação justa: os modelos de comunicação e locomoção eram absolutamente diferentes há um século, quando todos dependiam de navios a vapor e telegramas. “Hoje conseguimos cruzar o mundo de avião em poucas horas, o que certamente contribuiu para a disseminação do coronavírus, e a tecnologia permite que as informações cheguem a todo mundo quase que instantaneamente pelas redes sociais”, analisa o médico americano Damir Huremovic, editor do livro Psychiatry of Pandemics (A Psiquiatria das Pandemias, sem tradução para o português). 

Do ponto de vista de saúde mental, o episódio de 1918 também não serve como modelo para os tempos atuais: especialidades como a psiquiatria e a psicologia davam seus primeiros passos nas décadas iniciais do século 20 e as emoções humanas ainda não eram consideradas um fator preponderante para a saúde. “Falamos do momento em que Sigmund Freud (1856-1939) publicava seus trabalhos mais importantes, que definiriam a área”, lembra Huremovic. Curiosamente, o próprio Freud vivenciou a perda de uma filha por causa da gripe espanhola. Mesmo assim, o pai da psicanálise não chegou a refletir ou se debruçar sobre os efeitos da pandemia sobre a psique em seus escritos.

Outras tragédias, inclusive brasileiras, marcaram época e repercutem no cérebro e no imaginário até hoje. É o caso do incêndio na boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, em 27 de janeiro de 2013, que vitimou 242 pessoas. Ou do rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, no dia 25 de janeiro de 2019, que resultou em 259 óbitos. Mas, de novo, sobram diferenças e faltam semelhanças entre passado e presente. Você com certeza ficou chocado com as notícias lá atrás. Mas, se não mora em algum desses municípios brasileiros, sua vida não foi diretamente alterada durante o ocorrido ou depois dele. Seus compromissos não foram cancelados, tampouco havia incerteza sobre o dia de amanhã. Agora é diferente.

 Em um período sem precedentes como este, nada mais justo e sensato do que ouvir o que nos diz a biologia. “Quando estamos diante de uma ameaça à vida, ativamos o mecanismo de luta ou fuga”, resume o psicólogo Felipe Ornell, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Esse mecanismo, herdado dos nossos mais remotos antepassados, se traduz hoje numa palavra corriqueira: estresse. Há milhares de anos, o homem das cavernas que andava pelas savanas e encontrava uma fera no caminho tinha que se decidir entre partir para cima ou sair correndo. Estresse na veia. 

E é essa reação que deixa o organismo preparado para agir. O cérebro lança um comando para uma glândula que começa a produzir cortisol, o famoso hormônio do estresse. Isso, por sua vez, faz o coração disparar, com o objetivo de levar mais sangue para os músculos trabalharem. A respiração se acelera na tentativa de captar mais oxigênio. Estoques de energia são liberados para servir de combustível. Graças a esse sistema veloz e afinado, nossa espécie sobreviveu às adversidades. 

O problema é que o inimigo de 2020 não tem rosto, nem dá pra fugir dele: como pode estar em qualquer lugar, representa um perigo permanente, o que dispara o gatilho da tensão a todo instante. “Em paralelo ao coronavírus, vemos surgir uma pandemia de medo e estresse”, interpreta Ornell. Eis o começo de uma dura jornada mental, que pode desembocar em ansiedade, depressão… 

<span class="hidden">–</span>Foto: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital
<span class="hidden">–</span>Ilustrações e gráficos: Letícia Raposo e Bananajazz/SAÚDE é Vital/Getty Images
<span class="hidden">–</span>Ilustrações e gráficos: Letícia Raposo e Bananajazz/SAÚDE é Vital/Getty Images

Apesar dos constantes avisos de cientistas de que uma pandemia estava por vir, a verdade é que o mundo inteiro foi surpreendido pelo coronavírus: no comecinho de 2020, nenhum presidente, senador ou deputado imaginava que estávamos à beira do caos. E esse despreparo, de certa maneira, contribuiu para bagunçar ainda mais o coreto. Afinal, lidamos com uma doença em que não há perspectiva de vacinas ou remédios com capacidade de cura para os próximos meses. A única medida que resta para conter o avanço e diminuir o impacto nos sistemas de saúde é o isolamento social: com menos gente circulando pelas ruas, a taxa de transmissão do vírus cai, o que permite aos hospitais absorverem a demanda de novos pacientes. 

Que fique claro: permanecer trancado em casa é vital para lidar com a pandemia no atual estágio e todos devemos ter responsabilidade e obedecer às orientações das autoridades em saúde pública. Mas isso não quer dizer que essa estratégia seja isenta de efeitos colaterais: não sair às ruas pesa na cabeça. “Pra começo de conversa, nos tornamos saudosistas das pequenas experiências da vida, como admirar aquela árvore bonita que acaba de florescer”, exemplifica a psicóloga Beatriz Borges Brambilla, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 

E essa é apenas a ponta do iceberg: um estudo da Universidade Brigham Young, nos Estados Unidos, estima que a falta de contatos sociais traz riscos à saúde comparáveis a fumar 15 cigarros por dia e chega a ser duas vezes mais danosa que a obesidade. Para piorar, nas raras vezes em que nos aventuramos no mundo exterior nas visitas ao mercado ou à farmácia, somos confrontados com rostos cobertos por máscaras, que nos impedem de interpretar as emoções dos interlocutores. Não há dúvida de que, como seres sociais, necessitamos da troca de experiências, do diálogo e da convivência em comunidade para sermos felizes. 

Enquanto isso não é 100% possível, resta então manter a conversa com as devidas adaptações. É hora de usar e abusar dos aplicativos de videochamada, como o Skype, o WhatsApp, o Zoom e o Google Hangouts. Claro que não é a mesma coisa que encontrar os amigos num bar ou bater papo com a família no almoço de domingo, mas essas interações a distância ao menos ajudam a preencher um pouco do vazio e da saudade que sentimos de estar com aqueles que amamos.

Quem lê tanta notícia?

Outro ingrediente que ajuda a compreender esse quadro inédito é a quantidade de informações que recebemos nos dias de hoje. Os números são assustadores: de acordo com o site Internet Live Statsa cada segundo o mundo produz e compartilha na web 2,9 milhões de e-mails, 8 947 posts no Twitter, 987 fotos no Instagram, 4 602 chamadas no Skype e 82 386 pesquisas no Google. Sim, você leu certo: isso tudo aparece nos computadores e nos smartphones em um mísero segundo! 

Agora, imagine como fica a situação diante de uma ameaça viral, em que novos fatos pintam a todo instante e a ciência está em constante atualização. Não à toa, semanas antes de decretar a pandemia, a Organização Mundial da Saúde já classificava toda a situação como uma infodemia. Em outras palavras, a abundância de vídeos, textos, gráficos, ilustrações e áudios, sejam eles verdadeiros ou mentirosos, dificulta o entendimento das orientações e gera uma crise de confiança entre a população. Das duas, uma: ou você fica totalmente paranoico ou passa a duvidar de tudo que brota na tela do seu celular.

Para lidar com esse dilema, os especialistas sugerem adotar uma espécie de dieta de notícias. “Não fique constantemente com a televisão ligada ou com as redes sociais abertas. Defina períodos específicos de seu dia para se atualizar sobre os fatos”, indica a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da International Stress Management Association (Isma-BR). Priorize os meios de comunicação sérios e os sites oficiais das entidades e tome cuidado com as onipresentes fake news: ao receber qualquer informação por WhatsApp, cheque a fonte e a data do conteúdo. Se tiver dúvida sobre a veracidade daquela mensagem, melhor não compartilhar.

Bolsos mais vazios

Um terceiro aspecto que tira o sono de qualquer um é a perspectiva de uma recessão global. O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que o mundo entrará na maior crise desde 1929, ano em que ocorreu a quebra da bolsa de valores de Nova York, nos Estados Unidos. O enfermeiro Carlos Sequeira, professor da Escola Superior de Enfermagem do Porto, em Portugal, estudou a fundo como o colapso econômico que acometeu a Europa a partir de 2008 afetou a saúde mental da população. “Nesse período, houve um aumento significativo das taxas de suicídio no continente”, relata. O problema é que são raros os governantes que se importam de fato com essa questão. “Por mais que muitos digam que o tema é prioridade, poucos fazem algo concreto para evitar os surtos de ansiedade e depressão que se desenrolam a partir das dificuldades financeiras”, critica o especialista. 

O Brasil, que já vinha aos solavancos nos últimos anos, pode passar por momentos turbulentos, infelizmente. Pacotes de estímulo à economia que foquem no trabalhador e nas empresas já são urgentes. Do ponto de vista individual, será preciso se reinventar e adequar as expectativas para garantir um equilíbrio tanto das contas quanto da mente. “Não crie tensões desnecessárias sobre coisas que estão fora de seu controle”, diz a psiquiatra Mariana Castro, mestre em saúde pública pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Temos a oportunidade de aprender com os erros das crises passadas e, dentro do possível, buscar o bom e velho balanço: planejar o futuro sem cair na neurose extrema. 

<span class="hidden">–</span>Foto: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital
<span class="hidden">–</span>Ilustrações e gráficos: Letícia Raposo e Bananajazz/SAÚDE é Vital/Getty Images
<span class="hidden">–</span>Ilustrações e gráficos: Letícia Raposo e Bananajazz/SAÚDE é Vital/Getty Images

A edição 2020 do Big Brother Brasil, da TV Globo, foi uma das mais bem-sucedidas dos últimos anos. De acordo com os analistas, grande parte do sucesso alcançado pela atração se deve ao fato de a população também estar trancada em casa, sem acesso ao mundo exterior, numa situação relativamente parecida com a dos participantes do reality show. De certa maneira, isso criou cumplicidade e empatia entre espectadores e protagonistas, o que certamente catapultou a audiência. Por mais que existam muitas críticas ao programa, é inegável que o formato conquistou o público e garantiu um belo lucro aos seus organizadores.

O que mais chama a atenção nesse espetáculo televisivo são os conflitos que surgem a partir do convívio forçado por três ou quatro meses. Do outro lado das telinhas, vemos o mesmo fenômeno ocorrer: no Big Brother da vida real, a quarentena pode ser uma verdadeira prova de resistência. Com as escolas fechadas, crianças e adolescentes ficam o tempo todo em casa. A mesma regra se aplica aos adultos, que rebolam entre as demandas do trabalho a distância, os afazeres domésticos e o raro tempo livre para descanso e lazer. “A tripla jornada é ainda mais preocupante entre as mulheres, que ficam responsáveis por cuidar de vários quesitos do lar e da família”, nota a terapeuta ocupacional Sabrina Ferigato, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), no interior paulista.

No olho desse furacão, não raro aparecem as brigas entre os casais ou os conflitos entre pais e filhos, avôs e netos. Na China, o primeiro epicentro do coronavírus, alguns cartórios registraram um aumento nos pedidos de divórcio quando a vida começou a voltar ao normal. Nas províncias de Shaanxi e Sichuan, por exemplo, houve um recorde nos índices de separação a partir das últimas semanas de março, de acordo com informações do jornal chinês The Global Times. 

Para a psicóloga Beatriz Brambilla, da PUC-SP, existem dois fatores principais que produzem esse desgaste nas relações. O primeiro deles é a falta de assunto. “Como não saímos, não temos muito o que contar sobre novidades do trabalho ou algo diferente e curioso que vimos no caminho”, observa. O segundo ponto é que, nesse intensivão da convivência, passamos a observar em detalhes os defeitos e as manias que nosso parceiro possui. “É aquele barulho com a boca que eu nunca tinha notado no meu esposo, e outros traços de personalidade como esse que antes passavam desapercebidos”, exemplifica Beatriz. 

Para evitar brigas e rompimentos, a melhor ferramenta é o diálogo. Converse com os companheiros de quarentena e busque sempre tornar o dia a dia mais agradável para todos. Compartilhe seus sentimentos e converse sobre os pontos que estão incomodando. Reservar um tempo para si e fazer atividades individuais que trazem relaxamento e bem-estar também são uma saída necessária para aliviar o clima e, assim, prevenir discussões e tensões desnecessárias.

Um terceiro fator que precisa ser discutido nesse contexto é o da violência doméstica. Dados do Núcleo de Gênero e do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público de São Paulo revelam que casos de agressões aumentaram 30% em março de 2020, quando o isolamento social foi iniciado. Aqui, não há conversa que resolva: as vítimas, majoritariamente mães e esposas, devem procurar assistência nas Delegacias de Defesa da Mulher, na Casa da Mulher Brasileira ou nos Centros de Acolhimento, que continuam funcionando normalmente durante a pandemia.

Pra (não) dizer adeus 

Na sociedade ocidental, o velório e o enterro são etapas muito importantes na hora de se despedir de alguém querido que acaba de morrer. É uma cerimônia em que os mais próximos recebem abraços e palavras carinhosas. Isso traz conforto e suporte para lidar com aquela perda e superar a tristeza. E como fica essa tradição tão essencial em nossa cultura num período em que o número de mortes por Covid-19 está aumentando, as aglomerações permanecem vetadas e o sepultamento geralmente só pode ser acompanhado por quatro ou cinco parentes? 

Sim, o cenário é terrível e exige, mais uma vez, uma reinvenção no jeito como expressamos afeto e solidariedade. “Podemos fazer rituais a distância, por meio de videochamadas, em que todos se reúnem para fazer uma oração, acender uma vela, trocar mensagens, enfim, o que seja significativo para aquele grupo que está de luto”, aponta a psicóloga Daniela Achette, da Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Se o ente querido perdido possuía alguma religião, vale conversar com o padre, o pastor ou o líder espiritual daquela crença para que ele reze, abençoe e diga palavras que tragam alento. 

As crianças merecem uma abordagem especial num momento como esse. “É importante explicar para elas o que está acontecendo e deixá-las livres para expressarem as emoções como acharem mais cômodo”, acredita Daniela. Afinal, o luto é um processo que não segue uma receita de bolo: cada um reage e lida com ele da sua maneira pelas semanas, meses ou anos seguintes. “O legado que a pessoa querida deixou funciona como um nutriente para que eu continue tocando a vida e construa novos significados a partir das memórias”, completa a especialista. É tipo aquela lembrança de um prato que sua avó fazia: com o passar do tempo, vem uma saudade gostosa que deixa o coração quentinho. 

<span class="hidden">–</span>Foto: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital
<span class="hidden">–</span>Ilustrações e gráficos: Letícia Raposo e Bananajazz/SAÚDE é Vital/Getty Images
<span class="hidden">–</span>Ilustrações e gráficos: Letícia Raposo e Bananajazz/SAÚDE é Vital/Getty Images

“De certa maneira, a pandemia de Covid-19 e todos os seus desdobramentos nos obrigam a entrar em contato com uma realidade que antes não nos atingia”, reflete o médico Felipe Corchs, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Repare bem: ficar preso em casa e sentir-se inseguro é algo comum para milhões de pessoas que vivem em regiões de conflitos e guerras civis. E não precisa ir longe para perceber como essa é a rotina de um monte de gente. Em muitas favelas brasileiras dominadas pelo tráfico e pelas milícias, há toques de recolher, áreas onde a circulação está proibida e tiroteios constantes. E isso, claro, ecoa na saúde mental.  

O psiquiatra Paulo Amarante, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, segue a linha de raciocínio: “Viver nesses locais é uma forma permanente de resistência”. Décadas de precariedade no transporte público, violência e ausência de políticas públicas desenvolvem uma capacidade de improvisação. “Boa parte desses sujeitos cria uma habilidade para lidar com as adversidades e os sofrimentos que aparecem pelo caminho”, analisa. Outros, na contramão, acabam desenvolvendo transtornos psiquiátricos: no Brasil, quadros como ansiedade, depressão e hiperatividade atingem de duas a três vezes mais as crianças pobres do que aquelas que pertencem à classe média. 

Esse drama pode ser ampliado a partir de agora, quando o coronavírus aprofundar o abismo das desigualdades. Para combater isso, lideranças e organizações sociais dos bairros menos favorecidos arregaçaram as mangas e deram o pontapé em projetos de conscientização dos moradores, de arrecadação de alimentos e itens de higiene, entre outros. A comunidade paulistana de Paraisópolis, por exemplo, bolou um esquema de notificação de casos suspeitos de Covid-19 pra lá de criativo: 420 indivíduos foram eleitos presidentes de rua. Cada um deles ficou responsável por acompanhar cerca de 50 casas e passar orientações aos vizinhos que apresentam sintomas sugestivos, como falta de ar, febre e tosse. Esses dirigentes ainda identificam as famílias que estão sem renda para que voluntários entreguem marmitas ao longo das semanas. 

Por mais bonita e inspiradora que a história seja, ela não pode servir de justificativa para os governantes se furtarem de suas responsabilidades. “É justamente a hora de pensarmos sobre a grande quantidade de pessoas vulneráveis em nosso país e lançar mão de políticas protecionistas, que garantam saúde e dignidade a todos”, afirma Amarante. Fortalecer o Sistema Único de Saúde, o SUS, é uma estratégia inteligente para isso: com mais acesso a informações e cuidados básicos, muitas doenças podem ser prevenidas em sua origem. Isso, claro, repercute em cheio no bem-estar mental de todos: uma sociedade mais justa e igualitária é também uma sociedade menos estressada, ansiosa e deprimida.

A humanidade é desumana

Se, por um lado, a pandemia nos regala histórias belas e inspiradoras, por outro, deparamos com episódios absolutamente tristes e negativos. “Nas últimas semanas, acompanhamos notícias de xenofobia, preconceito e protestos que negavam a existência do problema e banalizavam milhares de mortes”, descreve a professora Sabrina Ferigato. Nas redes sociais, circularam diversas publicações mentirosas dizendo que o agente infeccioso foi fabricado em laboratório para derrubar governos mundo afora. Outros insistem em chamar o coronavírus de “vírus chinês”, numa tentativa de estigmatizar um país e um povo. Teve um grupo ruidoso que saiu às ruas em carreatas, exigindo o fim do isolamento social, quando a recomendação científica é justamente fazer o oposto.

É possível compreender essas respostas extremadas do ponto de vista da psicologia e da psiquiatria. “Esse tipo de manifestação virtual ou até mesmo os protestos que ocorreram recentemente são demonstrações de medo, revolta e falta de compreensão de uma nova realidade que se impôs sobre todos nós”, conjectura Ornell. São reações que estão diretamente vinculadas àqueles temores que descrevemos no início da reportagem: incerteza sobre o dia de amanhã, excesso de informação, início de uma crise econômica… 

Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar

No campo das vulnerabilidades, é urgente abordar o que vem ocorrendo com os grupos de risco para a Covid-19. Pelo que se sabe até agora, indivíduos com mais de 60 anos, diabéticos, hipertensos, obesos e portadores de doenças crônicas no coração ou nos pulmões (insuficiência cardíaca, arritmia,  DPOC…) apresentam uma mortalidade maior quando são infectados pelo novo coronavírus. Em relação à saúde mental, isso causa um estrago danado: afinal, essa turma vive num constante estado de alerta, como se estivesse o tempo todo com a cabeça a prêmio. 

A questão é particularmente delicada nos mais velhos. “Estamos vivendo o pico da emergência do etarismo, que reflete uma intolerância com os idosos por meio de estereótipos”, discursou a psicóloga Anita Neri num debate online promovido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Olha o absurdo: tem quem pense que eles são culpados pelo problema e nem devessem ocupar os leitos de unidades de terapia intensiva (UTI) por não serem tão produtivos quanto os jovens. “Existem respostas que a sociedade pode dar, como a solidariedade entre gerações e um discurso de união, pois estamos juntos nessa”, acredita Anita. Se você já passou das seis décadas de vida, compreenda que o melhor a ser feito é ficar em casa e se resguardar. Caso você tenha algum familiar nessa faixa etária, é hora de reforçar o diálogo e a paciência. 

<span class="hidden">–</span>Foto: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital
<span class="hidden">–</span>Ilustrações e gráficos: Letícia Raposo e Bananajazz/SAÚDE é Vital/Getty Images
<span class="hidden">–</span>Ilustrações e gráficos: Letícia Raposo e Bananajazz/SAÚDE é Vital/Getty Images

Se a Covid-19 seguir a mesma trilha do que aconteceu em 2002 e 2003, durante a pandemia de Sars (síndrome aguda respiratória grave), a tendência é que tenhamos uma avalanche de doenças psiquiátricas nos próximos meses. Há 17 anos, houve um aumento de 30% nos casos de depressão, ansiedade e estresse pós-traumático entre os indivíduos que ficaram de quarentena na China, o país mais atingido pela doença à época. Os dados são de um levantamento realizado por pesquisadores do King’s College London, na Inglaterra, e foram publicados no prestigiado periódico científico The Lancet recentemente.

Para enfrentar esse desafio que virá, o primeiro passo é entender e conscientizar todo mundo de que as emoções são parte fundamental da saúde. Nessa linha, é vital reforçar a mensagem de que as doenças psiquiátricas não são “frescura”, muito menos “coisa de louco” — um preconceito que ainda existe por aí. Elas devem ser diagnosticadas e tratadas com o mesmo respeito e seriedade de qualquer outra enfermidade que atinge o corpo. Sentir-se mal diante do atual cenário é compreensível e até esperado, mas não podemos deixar esses sentimentos ultrapassarem certa fronteira. 

“É necessário buscar auxílio do profissional de saúde quando há um sofrimento que está prejudicando o dia dia”, orienta o psiquiatra Antonio Egidio Nardi, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entre os sintomas que ligam o sinal de alerta, fique de olho em cansaço extremo, desânimo recorrente, preocupação exagerada com tudo e pensamentos que não saem da cabeça sobre desastres ou morte. O diagnóstico precoce dessas condições garante um tratamento mais tranquilo e eficaz.

Quem já faz psicoterapia ou toma medicamentos para cuidar de algum problema que abala a mente não deve interromper o tratamento de forma alguma. Converse com seu médico e peça orientações sobre como obter a receita para comprar os fármacos ansiolíticos, antidepressivos ou estabilizadores do humor nos próximos meses. Para essa turma, os bem-vindos aplicativos de videochamada garantem a continuidade das sessões de terapia a distância.

Acabou chorare?

Nessa era de reclusão coletiva, vale ainda ficar atento a outros quesitos fundamentais para manter o corpo e a mente em equilíbrio. O primeiro desses fatores é o descanso noturno. “A falta de controle sobre a situação e o medo aumentam os níveis de estresse, que, por sua vez, perturbam o sono”, explica a psicobióloga Monica Andersen, diretora do Instituto do Sono, em São Paulo. Quando estamos em casa, temos a tendência de atrasar os compromissos diários: acordamos, almoçamos, jantamos e voltamos a dormir cada vez mais tarde. “Precisamos manter uma regularidade nos horários durante todos os dias da semana, especialmente neste período de quarentena”, completa a expert. 

Não dá pra se esquecer também de tomar sol todos os dias. Reserve alguns minutos da manhã, antes das 11 horas, para relaxar na varanda, no quintal ou na laje. Esse banho de luz estimula a liberação de serotonina, substância que, entre os neurônios, produz a sensação de bem-estar. Manter uma rotina de exercícios físicos é outra via para garantir o equilíbrio da química cerebral, bem como caprichar no consumo de frutas, verduras, hortaliças e alimentos naturais e frescos. É aquele pacote básico de recomendações de saúde que não muda nem em tempos de pandemia.

Talvez o grande aprendizado que vamos tirar de toda essa crise seja entender de vez que felicidade e saúde dependem do convívio com o outro. E temos na nossa frente uma oportunidade de fazer a diferença: não faltam projetos e iniciativas de arrecadação de fundos e recursos para quem mais precisa. Tudo pela internet, sem precisar sair do sofá. Mas o amparo vai além de dar dinheiro ou cesta básica: caso você possa, por que não perguntar ao seu vizinho se está precisando de alguma coisa? Ou, quem sabe, deixar um pedaço de bolo que você acabou de fazer para que ele tenha uma tarde mais doce e agradável? É hora de pensar também nos profissionais autônomos que prestam algum tipo de serviço em sua casa: diaristas, manicures e babás dependem daquele dinheiro para passar o mês. Se sua renda permite, continue realizando os pagamentos, mesmo que esses trabalhadores não possam estar presentes durante um período. 

A criação de redes de apoio traz ganhos ao bem-estar mental: estudos endossam que fazer o bem faz bem (e não é força de expressão!). “Um ato de solidariedade e empatia ativa áreas do cérebro ligadas ao prazer e à recompensa e aumenta a quantidade de neurotransmissores como a dopamina, que está relacionada a essas emoções”, revela a neuropsicóloga Luciana Azambuja, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 

Chegando juntos ao final desta odisseia, posso compartilhar que estou tentando botar em prática todas as recomendações sobre as quais escrevi. Às vezes, elas dão certo. Em outras ocasiões, falho miseravelmente — e tudo bem! Me apego ao fato de que, uma hora ou outra, a humanidade vai superar o coronavírus. E essa conquista não pode simplesmente ignorar as sequelas e lições que ficarem dessa batalha. Se as pessoas se tornarem mais solidárias e conscientes sobre a saúde e os sentimentos, nosso legado às futuras gerações já estará garantido.

<span class="hidden">–</span>Foto: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital
<span class="hidden">–</span>Ilustrações e gráficos: Letícia Raposo e Bananajazz/SAÚDE é Vital/Getty Images
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A epidemia oculta: saúde mental na era da Covid-19 Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br

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