segunda-feira, 1 de junho de 2020

Carta ao leitor: a Torre de Babel da dívida pública

Palavras são que nem crianças: a gente cria, mas um dia elas saem de casa e caem na vida. “Economia”, por exemplo. Hoje ela é uma palavra chata: remete a gravata, banco, planilha. Mas ela foi criada num lar mais aconchegante que o Excel. Os pais dessa moça são os pensadores da Grécia Antiga. “Eco” vem de oikos, “casa”. O “nomia” significa “regras”, “normas”. “Economia”, então, é o “gerenciamento da casa”, do mesmo jeito que “ecologia” é o “conhecimento sobre a casa”.

Para gerenciar uma casa decentemente, uma família não pode gastar muito mais do que aquilo que entra de renda. Não rola fazer dívidas monstruosas. Mas, da mesma forma como há quem more em apartamentos mais caros do que o salário comporta, há países que gastam mais do que sua renda permite.

Até outro dia, no começo dos anos 2000, o normal para um país era dever coisa de 40%, 50% daquilo que ele produz de valor ao longo de um ano (o PIB dele). Depois da crise de 2008, aquela cujas ondas só reverberaram por aqui a partir de 2014, a régua subiu. Nos países desenvolvidos, foi para perto de 100% do PIB (ou mais – caso dos EUA e do sul da Europa). Aqui, saltou da faixa do 50% para quase 80%.

Para quem os países devem tanto? Para eles mesmos. Governos têm algo que você não possui em casa: impressoras de dinheiro. Quando eles ligam essas máquinas, o dinheiro que sai dali fica contabilizado como dívida – e não é bom que essa dívida chegue perto do PIB, porque aí o dinheiro em si perde valor, e as impressoras se tornam inúteis: seu país vai passar a usar o dinheiro de outro país, e você, governante, perde o controle.

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Para testar isso, vá à Argentina só com reais no bolso. Será vida normal. A moeda deles é tão depauperada que os argentinos aceitam reais como se fossem dólares – enquanto isso, dentro do Brasil, pesos argentinos são tão bem recebidos quanto notas de banco imobiliário.

A crise de 2008 foi puramente “econômica”. O sistema financeiro global estava uma zona (tal qual em 1929), e os países limparam suas casas com detergente à base de dívida. Tais dívidas seguiram crescendo de lá para cá, e se encontram em nível recorde no planeta todo. A previsão era de que, logo mais, elas começassem a cair, com medidas de “austeridade fiscal” (jargão para “não gastar mais do que ganha”).

Mas aí veio outro problema. Agora, “ecológico”. Não ecológico no sentido daquele que se resolve plantando árvore e andando de bicicleta, mas no sentido original, roots, grego da palavra: o do “conhecimento sobre a casa”. O coronavírus fez a casa cair. E isso pede um novo conjunto de regras para a casa – normas de guerra desta vez, com todos os países do mundo testando novos limites para o seu endividamento.

O do Brasil mesmo deve passar de 90% do PIB, pela primeira vez na história; o dos países desenvolvidos, bem mais do que isso, voltando a níveis que não eram vistos desde a Segunda Guerra Mundial. Entenda tudo isso a fundo aqui na reportagem de capa da SUPER de junho. E, não custa lembrar: se possível, fique no oikos até a poeira baixar de verdade.


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