A parte A começa: notas vigorosas no piano e a voz de Paul. E só. Na repetição, entram pandeiro e violão, e as harmonizações vocais de John e George. Até que a bateria de Ringo, numa virada atacando tom-tom e surdo, dá punch à canção, abrindo espaço para a parte B, com mais versos de incentivo: “E toda vez que você sentir dor, ei, Jude, vá com calma. Não carregue o mundo todo nos ombros”. Assim a música prossegue ao longo de três minutos, até que gritos de McCartney dão a deixa para a coda, o encerramento – que, no caso de “Hey Jude”, se estende pela maior parte da execução: quatro minutos de canto repetitivo e apoteótico. A fórmula de uma canção pop perfeita, criação de um de seus mais talentosos artesãos.
Fun fact: no começo do take final das gravações, Ringo estava no banheiro. Ao ouvir os companheiros tocando sem ele, Starr voltou exatamente a tempo da sua entrada, na passagem da parte A para a B. Apenas um dos relatos extraordinários que criaram a mitologia em torno desta música de inspiração triste, mas que se tornou um hino de esperança – de que dias melhores virão.
A história é conhecida. Comovido com o desamparo de Cynthia e o pequeno Julian Lennon, depois do divórcio de John, Paul dirigiu seu Aston Martin até a casa deles, com a intenção de levar palavras de consolo. E caprichou demais nisso. Durante a viagem, começou a cantarolar versos pensando no menininho – que mesmo antes da separação já sofria com o pai ausente. “Hey Jules”, cantava McCartney, emendando mensagens de “bola para a frente”, de que aquele momento de dor passaria.
John Lennon não achou ruim a “intromissão musical” do colega em sua vida. Pelo contrário, amou a canção, disse publicamente que era a obra-prima de Paul. Quando McCartney mostrou-a pela primeira vez ao amigo, acompanhado de Yoko, comentou que os versos ainda não estavam perfeitos, que ainda mexeria neles, e substituiria o trecho “The movement you need is on your shoulder” (o movimento que você precisa está no seu ombro). Eram só palavras aleatórias, para guardar espaço para uma ideia melhor. Até porque repete o termo “shoulder”, do começo da parte B. Mas John adorou. “Não tire. É o melhor verso da música.”
“Hey Jude” foi lançada como single, antes do Álbum Branco. E até hoje costuma ser a última canção no setlist de Paul. A coda em que a plateia toda repete seus “na, na, na, na, na, na na… na, na, na, na… hey, Jude!”, de novo e de novo, dá a certeza – ainda que ilusória – de que o show nunca vai terminar.
Há três faixas da época com a palavra “revolução” no título: a primeira saiu num single, depois vieram esta e “Revolution 9”. As primeiras são a mesma música, mas com diferenças tão marcantes que decidimos incluir ambas neste dossiê. Em comum, a letra em que Lennon manda uma mensagem à juventude revolucionária, que queria pegar em armas. Ainda que fosse um megafone contra a Guerra do Vietnã, John ironizava ativistas que pediam o fim da guerra usando camisetas de Mao Tsé-Tung – responsável por 70 milhões de mortes.
O título pode ser uma combinação entre “Honey Pie”, do mesmo álbum, e “Wild Honey”, o nome de um disco dos Beach Boys lançado um ano antes. Mike Love, cantor da banda americana, era um dos companheiros dos Beatles na temporada na Índia. Mas a música não passa de um improviso instrumental de McCartney solo, cheio de ruídos e a repetição do título – uma letra de três palavras. “Estávamos num modo bem experimental”, disse.
Quando os Beatles estavam no retiro indiano, o grupo de ricaços “místicos” era heterogêneo. Um playboy foi a um safári para matar um tigre. John compôs a canção sobre o jovem fazendo trocadilho com os bangalôs locais.
Mais uma inspiração banal de Lennon que se transformava numa obra instigante. O Beatle disse ter tido a ideia da canção depois de ver uma peça publicitária que dizia “Cry, baby, cry. Make your mother buy” (chore, bebê, chore… faça sua mãe comprar). Ao instrumental roqueiro, John faz o contraste com um vocal suave, como se estivesse ninando um bebê. E a letra parece mesmo feita para criança, narrando o cotidiano de uma família real com seus filhos pequenos.
“The walrus was Paul.” Eis aí um verso para derreter o cérebro de todos os críticos que dissecavam as letras mais intelectuais de Lennon. Mas a morsa não seria o próprio John? À moda do Chacrinha, o Beatle às vezes parecia vir não para explicar, mas para confundir. E de propósito, como fez em “Glass Onion”, embaralhando personagem de diversas canções da banda.
Quando os Beatles voltaram da Índia, o clima entre eles foi do nirvana ao inferno. Harrison apareceu com uma de suas melhores criações, e os outros nem deram bola. Mas George teve uma ideia para que prestassem atenção: convidou um amigo para tocar na faixa. No caso, um dos melhores guitarristas do planeta: Eric Clapton. Não dava mais para ignorar.
Faltavam poucos dias para o aniversário de Linda, o que inspirou Paul a pensar no tema. Mas o que poderia ser balada virou um rock divertido quando, durante a gravação, ele e os outros Beatles assistiram The Girl Can’t Help It, cuja trilha é puro rock’n’roll dos anos 1950.
É uma tradição do blues, cantar sobre sofrimento e lamentação (uma música que veio dos escravos, afinal). E John Lennon recupera essa herança do gênero com o mesmo desespero de Help!, mas como se já não esperasse ajuda: “De manhã, quero morrer / À noite, quero morrer (…) Me sinto tão suicida”.
Irmã mais nova da atriz Mia Farrow, Prudence estava no grupo de ricos e famosos que, em 1968, viajou para a Índia para aprender a Meditação Transcendental de Maharishi Yogi. Enquanto alguns encaravam a temporada como turismo exótico, Prudence Farrow logo avançou no uso mental dos mantras – e passava a maior parte do tempo reclusa, meditando. Escalado para fazer com que a moça socializasse, Lennon se inspirou nela para escrever esta canção, em que a convida para ver a beleza do sol, do céu azul… Imagens ligadas à natureza, que marcaram as composições do grupo em Rishikesh.
McCartney tirou esse título de uma das frases de efeito do nigeriano Jimmy Scott, um artista figura que tocava conga em Londres e foi músico de apoio de Stevie Wonder. Segundo a esposa do africano, em seus shows Jimmy gritava para o público “Ob-la-di”, e os habitués respondiam “Ob-la-da” – ainda que a expressão não tivesse qualquer significado. Lennon e Harrison detestaram a canção engraçadinha – considerada o primeiro “ska branco”.
Se as semanas na Índia renderam uma explosão criativa para John, não fizeram tão bem para o seu sono. Nos domínios do Maharishi, bebida era terminantemente proibida. Drogas, então… Juntando essas abstinências com a saudade de Yoko, Lennon teve crises de insônia. E então passava os dias no modo zumbi, como o título da canção explica.
Por mais que a imensa maioria das canções dos Beatles fale de amor, a única em que os termos “sexo” e “sexy” aparecem não trata desse sentimento. O tema aqui é indignação contra assédio sexual. Apesar de Maharishi Yogi se dizer um celibatário, Lennon ficou sabendo que o guru – considerado um homem santo pelos Beatles – havia partido para cima da atriz Mia Farrow e que assediava outras discípulas. Assim que ouviu os rumores, John decidiu deixar o ashram (monastério indiano) junto com George.
O assédio nunca ficou confirmado, mas é certo que o Maharishi valorizava a mídia espontânea associada à presença dos Beatles no seu retiro. Quando seus garotos-propaganda anunciaram a partida repentina, o guru os questionou sobre o motivo. “Bom, já que você é tão cósmico, você deve saber”, foi a resposta de Lennon. A canção, de John, inicialmente citava o nome do guru com todas as letras. Mas a pedido de Harrison – e por receio de processos –, “Maharishi” virou “Sexy Sadie”.
Muito do desamparo nas canções mais angustiadas de Lennon vinha, sabe-se, do sentimento de abandono em relação à mãe, Julia, que psicologicamente o teria deixado duas vezes. Primeiro quando terceirizou os cuidados do pequeno para a tia de Lennon, de modo a ir viver com um amante. Depois quando Julia morreu atropelada, na adolescência de John.
A canção em que o Beatle presta homenagem à mãe é tocada só por ele ao violão. Na letra, Lennon usa aforismos do pensador libanês Kahlil Gibran, ainda sob influência da temporada na Índia, como “Metade do que eu digo é sem sentido. Mas eu digo só para que a outra metade possa alcançar você”.
Quando Paul se mudou para uma casa em Londres, que lhe permitia ir a pé até Abbey Road, decidiu arrumar um cachorro. E aí começou a história de um dos animais de estimação mais conhecidos do pop: uma old english sheepdog (raça também conhecida como pastor inglês) chamada Martha. Ela nasceu no mesmo ano em que o Beatle se mudou, 1966, e morreu já em 1981, na casa de campo da família McCartney, na Escócia. Paul fez esta canção ao estilo music-hall inspirado na cachorrona – era grande –, mas é perceptível que ele também está falando de um relacionamento amoroso com uma humana. No caso, a atriz Jane Asher, com quem havia rompido seu noivado. “Olhe bem em volta e você perceberá que nós fomos feitos um para o outro”, canta esse coração partido.
Assim como Lennon em “Julia”, Paul se deixa acompanhar apenas ao violão nesta canção folk. O artista fala de um melro-preto, pássaro muito presente na Europa. Mas sua inspiração para versos como “Pegue essas asas quebradas e aprenda a voar” foi outra: “Naquele tempo havia o movimento pelos direitos civis, pelo qual todos éramos apaixonados”, explicou mais tarde. “A canção é para uma mulher negra passando por esses problemas nos Estados Unidos. ‘Me deixe encorajar você a continuar tentando, a manter a fé, porque há esperança’.”
Nesta crítica anti-establishment de Harrison influenciada por A Revolução dos Bichos, de George Orwell, o guitarrista compara “porcos” de diferentes classes – ao som de cravo. E a música virou manchete quando, obcecado pelo Álbum Branco, Charles Manson ordenou uma série de assassinatos em 1969. Seus seguidores escreviam “pigs” nos corpos das vítimas com o próprio sangue delas.
John toca gaita nesta canção de Paul, uma homenagem aos filmes de faroeste, que tem um canto falado de McCartney, imitando o sotaque caipira americano. Escrita em Rishikesh, a letra teve colaboração de Lennon e de Donovan, músico que ensinou John a tocar violão dedilhado – e que também estava na Índia.
Comentando a explosão criativa do grupo durante a estadia no mosteiro indiano, Lennon disse que foi tanta que “até mesmo Ringo compôs uma canção”. Era raridade mesmo, mas não tinha a ver com o clima indiano de paz e amor, já que o baterista havia começado a trabalhar na canção ainda em 1964. Um violino faz a base perfeita para o estilo country da música.
Um indício do quanto os Beatles tinham facilidade de composição são as costuras de trechos de músicas inacabadas, resultando num final coeso – e mais inventivo. É o caso deste rock, que emenda três fragmentos musicais de John Lennon, e cuja inspiração surgiu quando George Martin lhe mostrou uma revista de armas que dizia no seu título “a felicidade é uma arma fumegante” – expressão adaptada de um livro da turma do Snoopy, A Felicidade é um Cachorrinho Fofo.
Esta faixa ganharia o concurso de “título mais estranho da obra dos Beatles”. Mas não seria assim caso a primeira ideia para título (“Come on, Come on”) fosse mantida. Ou se John deixasse as coisas claras, substituindo monkey (macaco) por Yoko Ono. Porque era a ela que ele se referia nesse hard rock, que chama a atenção pelo sino frenético na percussão e pelo peso das guitarras. “Todos pareciam estar paranoicos, com exceção de nós dois, que estávamos loucos de amor”, explicou o Beatle enamorado.
Confirmando que a inspiração pode surgir de todo lugar, Paul teve a ideia da letra quando viu, na Índia, dois macacos transando em público. Minimalista, a letra se resume a essa possibilidade de sexo explícito: “Por que não fazemos na estrada? Ninguém vai ficar olhando”. “Do it” é uma expressão que também se refere a transar. A música é um hardblues, com base de piano e uma introdução marcada por diferentes tipos de percussão: bateria, palmas e um batuque nas costas de um violão.
É considerada a primeira canção de amor de McCartney inspirada em Linda. E enlouqueceu o pessoal no estúdio: Paul só ficou satisfeito depois de 67 takes. A música é pontuada pelo violão do autor – George Harrison nem participou das gravações –, mas também conta com uma percussão inventiva. Da bateria, só os pratos. O resto é bongô e a marcação do ritmo com um pedaço de madeira, feita por John.
Uma palestra do Maharishi sobre a harmonia entre o homem e a natureza acendeu várias lampadinhas nas cabeças de Paul e John. Lennon compôs “A Child of Nature”, que não foi aproveitada pelos Beatles e, com nova letra, viraria o sucesso “Jealous Guy”. Já Paul conseguiu espaço para a sua no Álbum Branco. Tocou todos os instrumentos e cantou sobre a paz de espírito de passar o dia vendo as águas surgirem de uma nascente de montanha.
É mais uma canção de jazz tradicional dos velhos tempos, do tipo que Paul fazia para homenagear seu pai, Jim. Fala de uma garota da classe trabalhadora inglesa que acaba fazendo sucesso em Hollywood. “Eu gostaria de ser compositor nos anos 1920, eu gosto dessa coisa de fraque e cartola”, declarou Paul. George Harrison toca um baixo de seis cordas nessa faixa, e McCartney faz ele próprio o arranjo para clarinete e saxofone. De um jeito que seu velho aprovaria.
“Estou com bolhas nos meus dedos!”, gritou Ringo no final da gravação. Não era para menos. O baterista atacava o instrumento com toda a energia para dar conta do rock mais pesado, feroz e brutal de toda a obra dos Beatles. Era a tentativa de Paul de superar o peso da sonoridade da banda The Who. E ele conseguiu. “Helter Skelter” é considerada por boa parte da crítica como a precursora do heavy-metal. Embora o título seja o nome que se dá na Inglaterra para um escorregador em espiral, um brinquedo de criança, Charles Manson achou que era um alerta sobre um conflito racial que estaria prestes a eclodir nos EUA. E o nome da música acabou virando inscrição nas cenas dos crimes da “família Manson”.
Esse amor que Harrison diz celebrar o reencontro após um tempo tão longo, longo, longo não é a esposa Pattie Boyd ou mesmo uma garota de ficção. É deus. Desde que abraçou a cultura do Oriente George se especializou em disfarçar inspirações místicas em letras românticas – mais ao gosto do público. Com a exceção de umas viradas na bateria de Ringo, a suavidade do vocal e do arranjo lembram mesmo um cântico budista.
Assim como Tim Maia fez no Brasil, Harrison dedicou uma música ao chocolate. A letra enumera sabores de bombons – alguns inventados por ele mesmo. Mas “Savoy Truffle” é também uma composição que celebra a amizade com Eric Clapton – continuaram sendo parceiros mesmo depois que o ex-guitarrista do Cream conquistou a mulher de George, Pattie Boyd (enquanto ela ainda era casada com o Beatle). A canção fala do vício de Clapton nas trufas de uma loja de doces britânica, a Mackintosh’s Good News.
Nestes tempos em que a interpretação de texto não anda lá essas coisas no Brasil, e há extremismo entre os lados políticos, esta canção de Paul McCartney provavelmente seria censurada no País. Preste atenção aos versos: “As garotas da Ucrânia realmente são demais/ Elas deixam as ocidentais para trás / E as garotas de Moscou me fazem cantar e gritar”.
Como não se tem notícia de que Paul tivesse sido comunista, é claro que a letra é uma brincadeira do artista. Mais especificamente com uma banda que ele mesmo adorava, os Beach Boys, que encheram suas conterrâneas de elogios em “California Girls”. O pastiche se estende a “Back in the USA”, de Chuck Berry, que inspirou o grupo californiano. Este rock acelerado, como George Martin gostava nas aberturas dos LPs dos Beatles, só não tem Ringo na bateria. É da fase em que ele se fartou das brigas da banda e ficou um tempo de fora das gravações. O próprio Paul assumiu as baquetas.
Não é exatamente uma canção, mas uma colagem sonora que combina trechos de falas, aplausos, vidros quebrando, sons tocados ao contrário, distorções, ecos e a repetição de uma voz professoral repetindo “Number nine… Number nine…”. Tem a cara do envolvimento de Yoko com música de vanguarda, e ela realmente participou do processo criativo com John. McCartney, que teve contato com as obras de John Cage e Stockhausen e fazia colagens sonoras desde 1966, deve ter se aborrecido. Mas não devia. “Revolution 9” é certamente a faixa mais pulada entre os ouvintes do Álbum Branco.
Com seu arranjo orquestral à la Barry Manilow, esta canção é, certamente, a mais melosa de todo o repertório do grupo. Mas quem pensou em Paul McCartney como autor da composição errou feio. É música de John, o Beatle rebelde, embora cantada por Ringo – aliás, nenhum dos outros Beatles toca na música, nem Lennon. “Goodnight” foi idealizada por John como uma doce canção de ninar para o filho Julian. Mas exagerou no açúcar.
A faixa é marco de novidades na trajetória do grupo – principalmente de Harrison. Foi a primeira do guitarrista a entrar num single da banda – lado B de “Lady Madonna”. Finalizou a trilogia de canções com forte influência clássica indiana – depois de “Love You To” e “Within You Without You”. E foi a única gravação dos Beatles num estúdio fora da Europa – em Mumbai, Índia.
Novamente os Beatles chegavam ao número um das paradas britânicas com um single cheio de energia. “Lady Madonna” marcou a volta dos Beatles ao rock direto, básico e sem firulas, e agora com guitarra distorcida. Paradoxalmente a faixa tem piano ao estilo jazzístico, backing vocals de music-hall e quatro saxofones. Jazz-rock? Não, longe dessa fusão detestada pelos roqueiros tradicionais. Mas tem jazz. E tem rock. Amalgamados pelo talento único de Paul.
Esta versão da música que saiu no Álbum Branco é bem diferente: aceleradíssima, com vocal bem rocker de Lennon – na outra, seu canto é suave, como a dialogar com os revolucionários –, tem guitarras distorcidas predominando o tempo todo. “Não conte comigo se o caminho for a violência”, declararia John sobre a canção. “Não espere me ver nas barricadas, a não ser que seja com flores.”
1968: Os Beatles na vibe da meditação transcendental Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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