Há alguns dias, estava limpando minha caixa de entrada no e-mail quando uma mensagem chamou a minha atenção: um texto do departamento de comunicação da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) contava brevemente quem foi o médico e farmacêutico Geraldo de Paula Souza.
Fiquei curioso pra saber mais e joguei o nome dele no Google. Para minha surpresa, encontrei pouquíssimo material sobre a biografia desse homem. Até li um artigo científico ou outro, mas não me deparei com nada voltado ao público geral.
Frustrado com minha pesquisa online infrutífera, voltei ao e-mail da FSP-USP e vi que no final do texto eles tinham disponibilizado um contato. Resolvi, então, escrever e bater um papo com a historiadora Mariana Dolci, doutora em ciências pela mesma faculdade. Em sua tese, ela pesquisou o trabalho e a obra de Geraldo de Paula Souza e contou histórias fascinantes que merecem ser conhecidas por todos. Sim, ele foi um dos fundadores da Organização Mundial da Saúde (OMS) – e muito mais do que isso.
Desde os tempos do Império
É preciso dizer que Paula Souza faz parte de uma linhagem com muita tradição: sua família pertencia à elite cafeeira paulista e já tinha influência na política brasileira na época de Dom Pedro I, no século 19. Seu bisavô, Francisco de Paula Souza e Mello, teve atuação importante nas Cortes de Lisboa em 1821. Seu avô, Antonio de Paula Souza, trabalhou como deputado e ministro da Agricultura do Brasil em 1864. Seu pai, Antônio Francisco de Paula Souza, foi um dos fundadores e diretor da Escola Politécnica, hoje parte integrante da USP.
Com essa bagagem, grandes realizações eram esperadas de Geraldo de Paula Souza. Formado em farmácia em São Paulo e em medicina no Rio de Janeiro, nosso personagem logo se interessou pela saúde pública. “Ele fez seu doutorado na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. De lá, trouxe o modelo americano de saúde para ser adaptado à realidade brasileira”, conta Mariana.
De volta ao país, Paula Souza virou professor da Faculdade de Medicina de São Paulo, que atualmente também integra a USP. No ano de 1918, era um dos responsáveis pelo Laboratório de Higiene e Saúde Preventiva. A entidade mudaria de nome em 1930, quando viraria o Instituto de Higiene de São Paulo — o prédio, aliás, foi construído com investimentos da Fundação Rockfeller, dos Estados Unidos, e permanece de pé até hoje na Avenida Doutor Arnaldo, na Zona Oeste da capital paulista, onde os alunos da FSP-USP aprendem, fazem suas pesquisas e atendem a população.
Prevenir em vez de tratar
Uma das primeiras realizações de Paula Souza foi a criação de um centro de saúde. “A proposta era ter um espaço para atuar no acompanhamento e na prevenção de doenças na comunidade, e não apenas um local para visitar quando já se está com algum sintoma”, explica Mariana. O Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza segue funcionando atualmente, mais de sete décadas após a sua criação.
Outro ponto da biografia do médico que merece destaque foi o projeto de adicionar cloro na água que chega às nossas casas. A melhora na rede de abastecimento à época permitiu reduzir incidência de doenças infecciosas, como a febre tifóide, na cidade de São Paulo.
“Paula Souza também foi pioneiro no que chamamos de educação sanitária: ensinar nas escolas técnicas básicas de higiene, como a lavagem das mãos e a importância de tomar banho. As crianças, por sua vez, levavam as informações para suas famílias e todo mundo aprendia”, destaca Mariana.
Voos mais altos
Nosso personagem se aventurou em terras internacionais ao virar representante diplomático do Brasil em questões relacionadas à saúde durante a República Velha (lembre-se que ele era de uma família influente, com muitas conexões na política). Isso permitiu que viajasse o mundo. “Era um homem muito interessado em estudar outras culturas e escreveu alguns artigos sobre a medicina do Japão e da China, que permanecem importantes até hoje”, conta a historiadora.
Ele também tinha um interesse pelos hábitos alimentares dos lugares que visitava. “Paula Souza guardava uma coleção de menus de restaurantes de todo o mundo”, revela Mariana. Não à toa, seu fascínio pela comida fez com que fosse um dos apoiadores e fundadores do curso de nutrição na FSP-USP, um dos mais importantes do país até os dias atuais.
Fundador da OMS
Dentro de sua atuação internacional, o médico foi representante do Brasil na Liga das Nações e na Organização das Nações Unidas (ONU). Foi numa dessas conferências e reuniões diplomáticas na cidade americana de São Francisco, em 1945, que Paula Souza propôs, junto com o diplomata chinês Szeming Sze, a ideia de criar uma agência voltada à saúde internacional. “Um ano depois, ele estava na reunião que esboçou a entidade, fundada oficialmente em abril de 1948 como Organização Mundial da Saúde, a OMS”, rememora Mariana.
Infelizmente, Paula Souza viveu pouco tempo para ver sua iniciativa gerar frutos: ele até foi membro da OMS, mas morreu de infarto fulminante em 1951, quando a instituição ainda ainda dava seus passos iniciais.
Anos depois, tivemos um compatriota que foi diretor-geral da OMS. O médico carioca Marcolino Candau (1911-1983) liderou a entidade entre 1953 e 1973. Atualmente, o cargo é ocupado pelo etíope Tedros Adhanom Gebreyesus. Mas essa é uma história para outro texto.
Um legado para o planeta
É fácil conferir o papel que a OMS teve em todos os continentes nessas quase oito décadas de existência: a entidade esteve à frente dos esforços para a erradicação da varíola por meio da vacinação, bem como é uma aliada de peso nas campanhas de imunização contra a poliomielite.
Vale destacar também a atuação da agência no desenvolvimento de ações concretas e políticas públicas contra grandes ameaças à saúde, como a obesidade, a resistência microbiana e pandemias ou epidemias, como a Covid-19 e o ebola.
Outra função relevante da OMS é a Classificação Internacional de Doenças (CID), um manual detalhado de todas as enfermidades que afligem o corpo e a mente.
Ponto final?
Causa espanto, ver que, mesmo diante de tantas conquistas, alguns líderes resolvam atacar a OMS em meio a maior pandemia do século: o presidente americano Donald Trump anunciou recentemente que os Estados Unidos deixará de financiá-la. Detalhe: o país é responsável por 12% do orçamento da entidade. O rombo pode impedir muitas das ações promovidas nas regiões mais pobres do planeta.
Na esteira do anúncio de Trump, o presidente Jair Bolsonaro também criticou a entidade por ter um suposto “viés ideológico” e deu indiretas de que nosso país poderia deixar de ser membro efetivo. Mas a nossa situação é completamente diferente.
“Nós não financiamos a OMS, muito pelo contrário. No meio da pandemia de Covid-19, dependemos dela e de seu escritório nas Américas para realizar a compra de testes, ajudar no levantamento dos números de casos e de mortes e na chegada de uma eventual vacina”, lista Mariana.
Em meio à tanta instabilidade, nos resta torcer para que a trajetória de Geraldo de Paula Souza seja reconhecida e comemorada como orgulho nacional. E, claro, que nossas atitudes no presente (ou no futuro) não manchem e destruam essa bonita história.
A incrível história do brasileiro que ajudou a fundar a OMS Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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