Uma das características mais exclusivas dos seres humanos é seu mundo mental. Embora possam existir paralelos no reino animal, nem mesmo aqueles que acreditam que outras criaturas realmente possuem uma consciência ousariam dizer que ela é idêntica, em natureza e processos, à humana – igualmente valiosa, pode até ser, mas idêntica não. Apesar das diferenças psicológicas que nos separam de outros animais, durante décadas pesquisadores julgaram por bem usar animais como referências experimentais para a investigação de comportamentos humanos. E, não podemos negar, com razoável – e previsível – sucesso.
Não surpreende que certos estados mentais moldados pela evolução encontrem padrões similares entre humanos e outros mamíferos próximos. E não é difícil imaginar experimentos que não maltratem os animais e nos permitam um vislumbre do que pode existir de comum entre nós e eles no âmbito psicológico. No entanto, alguns dos experimentos realizados ao longo do último século são de uma crueldade surpreendente e só podem ser tolerados à luz de uma moralidade que despreza completamente o sofrimento animal. Veja, por exemplo, o caso do prestigiado psicólogo americano Harry Harlow, que passou a maior parte de sua carreira na Universidade do Wisconsin.
Na década de 1950, ele iniciou uma série de experimentos com macacos resos cujo objetivo era estudar os efeitos do isolamento social. Em um dos arranjos experimentais, o pesquisador pegava bebês resos que já haviam criado laços com suas mães e os colocava em uma câmara vertical de aço inoxidável – um “poço do desespero”. E lá eles ficavam por meses e meses, às vezes, um ano inteiro. “Durante a sentença prescrita nesse aparato, o macaco não tem contato com nenhum animal, humano ou sub-humano”, escreveu Harlow, num artigo publicado em 1965 descrevendo os resultados.
Muitos dos macacos saíam da câmara completamente psicóticos, e uma boa parte jamais se recuperava do experimento. A principal conclusão do trabalho foi de que “isolação precoce duradoura e suficientemente severa reduz esses animais a um nível social-emocional em que a resposta social principal é medo”. Vamos combinar que esse resultado não só não era inesperado como, pelo menos à primeira vista, não parece particularmente útil para compreender ou tratar coisas como depressão clínica em humanos. Em resumo, um bocado de sofrimento inútil.
Uma história curiosa, contada pelo próprio Harlow em um de seus artigos, aconteceu quando um psiquiatra britânico, John Bowlby, visitou o laboratório. Harlow mencionou ao colega que no momento eles estavam trabalhando numa nova técnica para induzir psicopatologia nos bebês macacos, mas que não estava dando muito certo. Recebeu uma resposta irônica de Bowlby: “Por que você está tentando produzir psicopatologia em macacos? Você já tem mais macacos psicopatológicos no laboratório do que já foi visto na face da Terra”.
Bowlby era um especialista nas consequências de privação maternal, mas seus estudos foram realizados com crianças – principalmente órfãos de guerra, refugiados e jovens em orfanatos. Em 1951, antes que Harlow começasse a privar os macacos de suas mães, Bowlby já havia escrito: “Podemos concluir que as evidências são tais que não deixam espaço para dúvida sobre a proposição geral de que a privação prolongada de crianças jovens de cuidados maternais pode ter graves e prolongados efeitos sobre seu caráter e, portanto, em toda sua vida futura.”
Com estudos tão cristalinos, feitos com crianças humanas e sem envolver nenhum tipo de crueldade, que tipo de justificativa poderia haver para experimentos como os de Harlow? E ficava pior. O psicólogo americano e seus colegas também bolaram um experimento com “mamães monstros”, em que bebês resos eram expostos a bonecos que pareciam ser suas mães, mas então de surpresa se transformavam em monstros, por assim dizer. Na versão mais radical, o boneco soltava espinhos do corpo quando o bebê estava agarrado a ela. Os pobres animais se afastavam, mas retornavam à mamãe quando os espinhos recuavam. Então os pesquisadores concluíram que uma “mãe monstro” de mentira não bastava e arrumaram uma de verdade – uma macaca tornada psicótica por ter sido criada em isolamento – especialidade da casa.
Para engravidá-la, dada sua condição antissocial, os cientistas providenciavam um estupro por outros macacos. E depois observavam a macaca perturbada interagindo com seu bebê recém-nascido. Isso foi feito diversas vezes. Algumas das macacas simplesmente ignoravam os bebês e não os amamentavam. Outras eram bem piores. Harlow descreve: “As outras macacas eram brutais ou letais. Um de seus truques favoritos era esmagar o crânio do bebê com os dentes. Mas o padrão de comportamento realmente perturbador era o de bater a face do bebê no chão e então esfregá-la para frente e para trás”.
É assustador, e talvez mais chocante seja saber que Harlow teve tantos seguidores. Segundo Peter Singer, nos 30 anos que se seguiram ao início de seus experimentos de privação social e maternal, mais de 250 testes similares foram realizados, só nos Estados Unidos, envolvendo mais de 7 mil animais. E esses, por sua vez, são só um recorte limitado da vasta gama de experimentos de natureza psicológica realizados em animais. Alguns até produziam resultados potencialmente interessantes, mas a que preço?
Em 1967, os psicólogos Martin Seligman e Steven Maier, na Universidade da Pensilvânia, começaram a estudar o conceito de “impotência aprendida”, com base em experimentos com cães. No início dos estudos, três grupos de cachorros eram colocados numa coleira. O primeiro grupo ficava preso por um tempo e depois era libertado. Já os grupos 2 e 3 tinham de sofrer mais. No segundo grupo, os cachorros eram submetidos a dolorosos choques elétricos, que eles podiam interromper ao pressionar uma alavanca. No terceiro grupo, os cães recebiam os mesmos choques, ao mesmo tempo, mas sua alavanca não os interrompia. Ou seja, para esses animais, a dor parecia parar de forma aleatória (na verdade controlada pelos cães do grupo 2).
Logo os bichos do terceiro grupo chegavam à conclusão de que nada podiam fazer para escapar dos choques. Eles aprendiam a ser impotentes e mostravam alguns sinais compatíveis com depressão clínica. Na segunda etapa do experimento, um novo arranjo experimental colocava os cães numa caixa com dois compartimentos. Os cachorros eram submetidos aos choques, mas podiam escapar deles pulando para o compartimento mais baixo. Na maior parte das vezes, os cães do grupo 3 nada faziam, acostumados que estavam à inevitabilidade do sofrimento.
Eles podiam escapar dos choques facilmente, mas não o faziam. O único meio de fazer com que eles encerrassem seu próprio sofrimento era fisicamente pegar as patas dos cães e conduzi-los até o outro compartimento. Ameaças, prêmios e demonstrações não tiveram efeito. Esse resultado em particular tem alguma utilidade? Ou só preenche uma curiosidade? Cabe ainda o benefício da dúvida, convenhamos, apesar de toda a crueldade envolvida. Agora, outros testes não permitem nem isso.
Um exemplo é o experimento realizado por Gerald Deneau, do Centro Médico Downstate, da Universidade Estadual de Nova York, em 1969. Ele basicamente viciou macacos resos em cocaína, permitindo que os animais injetassem mais e mais droga em sua corrente sanguínea com um simples apertar de um botão. “Os macacos do teste apertavam o botão de novo e de novo, até depois de convulsões. Eles ficavam sem sono. Eles comiam cinco a seis vezes a quantidade normal, e ainda assim emagreciam (…). No fim, eles começaram a se mutilar e, no fim das contas, morreram de abuso de cocaína.”
Alguém precisa fazer um experimento assim para saber o que vai acontecer? Já não há viciados humanos involuntariamente se oferecendo para uma observação inequívoca de todos os malefícios do consumo de cocaína? Esses macacos precisavam ter passado por isso? Até mesmo Deneau escreveu que “poucas pessoas poderiam pagar as doses maciças de cocaína que esses macacos puderam obter”. A que propósito o sofrimento e a morte desses animais serviram?
Um ano no “poço do desespero” Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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