Na última semana, uma série de mudanças do Ministério da Saúde em relação aos dados da pandemia de Covid-19 vem dificultando o acesso ao número total de casos no Brasil.
As mudanças começaram com um ajuste nos horários de divulgação do balanço da pandemia. O ministério, que fazia o informe diário às 17h, passou a realizá-lo às 19h e, agora, às 22h. Isso dificulta a publicação dos dados em jornais impressos e nos principais telejornais do país.
Na última sexta (5), o presidente Jair Bolsonaro afirmou que, com a medida, “acabou matéria no Jornal Nacional“. É por isso que talvez você tenha se assustado com a vinheta do Plantão da Globo, já que, em resposta, a emissora disse que irá reportar os números assim que eles forem anunciados:
A gente cresce mas continua com medo do Plantão da Globo
— Ale Santos (@Savagefiction) June 7, 2020
Mas a mudança mais grave ocorreu na quinta-feira (4), quando o portal em o que ministério atualizava o quadro geral da pandemia no país saiu do ar. Quando voltou, passou a publicar apenas os novos casos diários, e sumiu com outras informações essenciais, como o número total de casos e todo o histórico do avanço da doença.
O Ministério da Saúde também mudou o sistema de contagem. Antes, o órgão fazia como todos os países fazem: se alguém morre na terça, mas o diagnóstico de morte por Covid só vem na quinta, o óbito entrava na contabilidade da quinta. Agora não. Se a notificação de Covid chega na quinta, o paciente que morreu na terça fica de fora da contagem. Essa pode ter sido a razão para a divulgação de números discrepantes na noite de domingo – primeiro, de 1.382 mortes; logo depois, de apenas 525, ainda que o Minstério da Saúde não tenha confirmado que essa tenha sido a origem da disparidade.
Não há como descrever de outra forma: a maquiagem de dados dificulta o acesso à informação, e pode agravar ainda mais a situação. Nesta segunda (8), Globo, Extra, Folha de S Paulo, Estado de S. Paulo, G1 e UOL anunciaram uma parceria para coletar dados sobre a pandemia, que serão informados pelas secretarias de Saúde dos estados brasileiros.
A falta de transparência com os dados de uma epidemia, contudo, não é de hoje. Na primeira metade dos anos 1970, o Brasil foi atingido por um surto de meningite que lotou hospitais, suspendeu aulas e até forçou o cancelamento dos Jogos Pan-Americanos, que iria acontecer em São Paulo. Mesmo diante de tudo isso, o governo militar demorou a agir – e fez de tudo para impedir que a imprensa falasse sobre esse assunto.
Meningite no Brasil
A meningite é uma infecção que atinge as meninges (membranas que recobrem o cérebro), afetando toda essa região e dificultado o transporte de oxigênio para as células. Ela é capaz de causar dor de cabeça e na nuca, rigidez no pescoço, febre e vômito. Em crianças e adolescentes, a doença evolui rapidamente, e pode dar origem a perda de sentidos e gangrena nos membros
Mas a meningite é uma doença complicada, já que ela pode ser causada por diversos agentes: vírus, fungos e bactérias. As infecções virais costumam ser menos graves, mas as bacterianas (as mais comuns) podem gerar grandes complicações. A taxa de mortalidade é alta (20%), e parte dos sobreviventes possuem alguma sequela, como perda da audição e paralisia de membros.
No Brasil, os primeiros casos da doença foram registrados em 1906, em imigrantes portugueses que vieram da Ilha da Madeira. Os infectados foram isolados para evitar que a meningite se espalhasse, e autópsias nos mortos reveleram a presença de meningococo (Neisseria meningitidis), principal bactéria causadora da doença.
Na primeira metade do século 20, o país passou por dois surtos de meningite: em 1923 e em 1945 – esta última acompanhou uma tendência mundial, já que a Segunda Guerra Mundial acabou acelerando a disseminação da doença. Até então, a forma mais eficaz de combate à ela eram com antibióticos, como a penicilina.
Mas o maior surto de meningite da história do Brasil foi o dos anos 1970. Os primeiros casos apareceram em 1971 em Santo Amaro, bairro da Zona Sul de São Paulo. Com o tempo, outros infectados surgiram nos bairros mais afastados, até que a doença atingiu o centro da cidade e as áreas mais nobres.
Até 1974, todas as regiões da cidade já possuíam casos. Esse ano marca o ápice da epidemia – a meningite, que antes era causada apenas pelo tipo C do meningococo, passou a acontecer também graças ao tipo A da bactéria, dificultando o tratamento. Em São Paulo, o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, único hospital que atendia os doentes, superlotou: com 300 leitos disponíveis, chegou a internar um número quatro vezes maior de infectados.
O governo demorou a agir. Foi apenas quando o Brasil já contabilizava algo em torno de 67 mil casos (40 mil deles apenas em São Paulo, fora a subnotificação) que a ditadura militar, então sob o general Ernesto Geisel, criou a Comissão Nacional de Controle da Meningite, que importou milhões de vacinas e criou um plano para conter a epidemia. Não que o governo não soubesse o que estava acontecendo antes – ele sabia, e fazia de tudo para encobrir.
Epidemia da desinformação
Antes de tudo, vale a contextualização: no início dos anos 1970, sob o governo de Emílio Médici, o Brasil passava pelo momento mais crítico da ditadura militar. Graças à repressão do regime, esse período ficou conhecido como Anos de Chumbo (1968-1972).
Ao mesmo tempo, o governo militar promovia o chamado “milagre econômico”, quando o crescimento da economia aumentou, a inflação caiu e grandes obras, como as usina nuclear Angra I, a hidrelétrica de Itaipu e a rodovia Transamazônica, começaram. A ideia era apresentar ao mundo que o Brasil era uma potência.
Juntando essas duas coisas, fica fácil entender que a notícia de uma epidemia mancharia a imagem do país – e, por tabela, dos militares. O governo negou a existência do problema, e proibiu que a mídia falasse sobre isso. A justificativa era que matérias “alarmistas” e “tendenciosas” pudessem causar pânico na população.
Antes de o surto atingir o seu ápice, um dos poucos veículos que conseguiram falar sobre o abafa do governo foi a revista Veja. Em outubro de 1972, ela publicou uma capa intitulada “A epidemia da desinformação”. Nessa época, apesar do descaso do governo federal, a secretaria de Saúde de São Paulo tentava lidar com o surto como podiam – inclusive, testando algumas vacinas para meningococo do tipo C.
A reportagem já falava sobre o descaso: “Enquanto puderam, as autoridades sanitárias guardaram um sigilo do qual até agora devem se arrepender”. A mesma Veja dois anos depois, em 1974, foi alvo de censura. A jornalista Eliane Cantanhêde, então repórter da publicação, havia conseguido uma entrevista com o ministro da Saúde Paulo de Almeida Machado, que havia sido nomeado naquele mesmo ano. Machado admitia pela primeira vez a existência de uma epidemia, e dava dicas para a população se proteger. Teria sido histórico, mas pouco tempo depois o governo decidiu censurar toda a conversa.
Outro caso notório é o do jornalista Clóvis Rossi. Em julho de 1974, enquanto trabalhava para o Estadão, Rossi escreveu o artigo “A epidemia do silêncio”. No texto, ele contextualizava o surto de meningite no Brasil, dizendo que o problema já acontecia há pelo menos dois anos e que, só naquele mês, 200 pessoas tinham morrido em São Paulo.
Além disso, Rossi também descrevia os desafios da imprensa em obter informações dos órgãos de saúde:
“[…] as autoridades cuidaram de ocultar fatos, negar informações, reduzir os números referentes à doença a proporções incompatíveis com a realidade — ou seja, levando, deliberadamente, a desinformação à população e abrindo caminho para que boatos ocupassem rapidamente o lugar que deveria ser preenchido per fatos. Fatos que as autoridades tinham a obrigação, por todos os títulos de esclarecer ampla e totalmente.”
O artigo, que hoje em dia pode ser lido na íntegra no acervo do Estadão, foi proibido de circular. No lugar, foi colocado um poema: um trecho de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Neste link, é possível comparar as duas versões da página do jornal.
Com o tempo, o número de casos já era tão grande que ficou insustentável para o governo jogar esse assunto para debaixo do tapete. A comissão criada organizou uma campanha de vacinação massiva em 1975. Só na região metropolitana de São Paulo, estima-se que 9 milhões de pessoas tenham sido imunizadas. Além disso, as aulas nas escolas públicas foram canceladas, e outros hospitais passaram a cuidar dos infectados. A taxa de letalidade da meningite caiu para 2% em pouco tempo.
A cidade precisou abrir mão também de sediar os Jogos Pan-Americanos. Quase tudo estava pronto: a raia olímpica e o complexo esportivo da USP, por exemplo, foram construídos para o evento. Mas não deu, e os jogos foram transferidos para a Cidade do México. Hoje, há quem defenda que problemas com falta de verba também foram um dos motivos para a troca.
Graças à demora para agir, o número de mortos pela meningite é impreciso: alguns levantamentos estimam que, no país, houve 1,6 mil mortes. Já outros dizem que, só em 1974, 2,5 pessoas morreram em São Paulo.
A resposta tardia e a censura à imprensa custou ao Brasil. Perdemos um evento esportivo. Mas isso, claro, não se compara às milhares de vidas perdidas – mortes que poderiam ser evitadas se tivéssemos suprimido a epidemia em seus estágios iniciais.
A epidemia de meningite dos anos 1970 – e como a ditadura militar a escondeu Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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