Todas as semanas, o empresário Rolf Ferdinando Gutjahr voava de Curitiba, onde morava, até Manaus, sede de sua fabricante de componentes para televisores. Nas sextas-feiras, voltava para casa. Em 29 de setembro de 2006, no aeroporto de Manaus, Rolf fez o que sempre fazia: ligou para a esposa, Rosane, minutos antes de embarcar. “Nêga”, disse à mulher, usando o apelido afetivo, “o voo vai atrasar uns minutinhos. Quando fizermos escala em Brasília, te ligo de novo”. Então se despediram.
Rolf estava prestes a cruzar céus confusos. Naquela época, voar estava cada vez mais difícil no Brasil. Só em 2005, o movimento de passageiros em aeroportos havia aumentado 19% – mas os investimentos no setor não haviam acompanhado esse crescimento. Pelo contrário: no mesmo período, a verba destinada a infraestrutura de controle aéreo, equipamentos e formação de equipes caiu pela metade. Em março daquele ano, os operadores de voo em Brasília haviam entrado em greve. protestando contra o mau estado dos equipamentos – todos os voos no País foram atrasados em três horas. Desde 2004, a Força Aérea Brasileira alertava o governo sobre a iminência de um apagão aéreo. No entanto, até o dia em que Rolf embarcou no Boeing da Gol, nada havia sido feito para evitar o caos.
Eram 13 horas e 35 minutos em Manaus quando o voo 1907 da Gol, prefixo Golf Tango Delta, decolou do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes. Além de Rolf, havia outros 147 passageiros e seis tripulantes. Ao atingir 37 mil pés, o comandante Décio Chaves Júnior e o copiloto Thiago Jordão acionaram o piloto automático do Boeing 737-300. Tranquilos, começaram a conversar sobre amenidades . Assim ficaram durante as horas seguintes.
Agora eram quase cinco da tarde. O Boeing sobrevoava uma região de floresta tropical no município de Peixoto de Azevedo, no Mato Grosso. Os voos ali eram supercontrolados pelo Cindacta-1, o Centro de Controle do Tráfego Aéreo de Brasília. Em sua câmera digital, o comandante Chaves mostrava fotos que havia tirado em uma recente viagem aos Estados Unidos.
“Que boa moto”, exclamou o copiloto.
“Vê o carro”, indicou o comandante.
Nesse momento, houve um estrondo, um solavanco sacudiu o cockpit e a ponta do Boeing guinou para a esquerda.“Rapaz do céu, não acredito que isso está acontecendo!”, gritou o piloto, incrédulo, a voz quase abafada pela ensurdecedora sequência de alarmes. Um terço da asa esquerda havia desaparecido. Chaves agarrou os controles, para tentar estabilizar a aeronave. Nessa hora, contudo, o avião já estava caindo.
Erros no céu e na terra
O avião que se chocara contra a asa do Boeing era um Legacy 600, pilotado pelos americanos Joe Lepore e Jan Paladino. Fabricado pela Embraer, o jato fora recém-adquirido pela ExcelAire, uma empresa de táxi-aéreo americana. Os aviadores americanos vieram ao Brasil com a missão específica de buscar a aeronave. O plano era transladá-la de São José dos Campos (SP) para Fort Lauderdale, na Flórida, com escala programada em Manaus.
Por volta das 14 horas, haviam embarcado com cinco passageiros: dois executivos da ExcelAire, dois representantes da Embraer e um jornalista. No escaninho do cockpit, estava a carta de voo – um mapa do trajeto que o jato deveria percorrer, com todas as mudanças e desvios necessários para evitar o caminho de outras aeronaves. A carta fora elaborada por uma empresa de aviação americana, a Universal Weather & Aviation. O Legacy devia começar a viagem a 37 mil pés e descer para 36 mil pés assim que entrasse no espaço aéreo de Brasília.
O primeiro passo na sucessão de erros que levaram à tragédia ocorreu com o Legacy ainda no solo. A torre de São José dos Campos informou que o jato poderia voar a 37 mil pés – mas não avisou que a altitude deveria ser alterada ao longo da viagem. Os pilotos entenderam que poderiam voar daquela forma até Manaus. O equívoco seria facilmente corrigido se houvessem consultado os papéis em seu escaninho. “Eles estavam com a carta de voo na cabine, mas não se deram ao trabalho de checá-la”, sustenta o escritor Ivan Sant’Anna, autor de Perda Total (Editora Objetiva, 2011), que narra esse e outros acidentes aéreos brasileiros.
Após a decolagem, os americanos acionaram o piloto automático – e só então começaram a estudar a fundo os controles e os programas da aeronave. Até aquele dia, os dois nunca haviam pilotado sozinhos um Legacy. Haviam treinado durante os últimos quatro dias, mas sempre com a ajuda de instrutores.
Na decolagem, os americanos não perceberam que um dispositivo importante estava desativado: o Traffic Collision Avoidance System, ou TACS. Esse sistema detecta aeronaves em sentido contrário e indica as manobras necessárias para evitar uma colisão. Outro erro veio logo em seguida: durante o voo, um dos americanos desligou o transponder, sistema que envia dados sobre a localização da aeronave para as torres de controle, incluindo a altitude exata. Com ambos os dispositivos desligados, outros aviões não podiam perceber o Legacy. Para as torres de comando, ele era apenas um pontinho aparecendo e sumindo nos radares.
Cerca de 20 minutos depois, os americanos entraram em contato com um operador de voo em Brasília – que respondeu alertando que o transponder estava desligado. Mas o operador falava um inglês macarrônico. “Não faço a menor ideia de que diabo ele disse”, comentou Paladino. Minutos depois, em Brasília, o controle passou a um segundo operador, o sargento Jomarcelo Fernandes dos Santos, cujo inglês era igualmente ruim. Para piorar, Jomarcelo estava atarefado controlando outros dois voos.
Quando Paladino entrou em contato, informando que estavam a 37 mil pés, o operador nada comentou. Na tarde de sol, as duas naves se aproximavam a uma velocidade somada de 1,6 mil quilômetros por hora. Se o sistema anticolisão do Legacy estivesse ativado, as aeronaves detectariam uma à outra. Com o TACS desligado, as duas tripulações não tinham como notar o impacto iminente. Às 16 horas e 56 minutos, a ponta da asa esquerda do Legacy trincou a do Boeing. “O que diabos foi isso?”, exclamou Lepore. Logo, os americanos perceberam que teriam de fazer um pouso de emergência: o Legacy estava com a ponta da asa esquerda arrancada e sem parte da cauda. Mesmo assim, conseguiu voar até a base aérea de Cachimbos.
No momento do impacto, a maioria dos passageiros no Boeing provavelmente estava em seus assentos, lendo ou descansando. Na batida contra o Legacy, ninguém morreu. Logo após, contudo, o avião despencou dando voltas como um parafuso e começou a se desintegrar ainda no ar. A queda durou 63 segundos, e é provável que a maior parte dos passageiros tenha desmaiado antes do impacto. A morte dos 154 ocupantes trouxe à tona o emaranhado de problemas que atravancava os céus do Brasil. Por conta do acidente, oito operadores foram afastados de suas funções. No País inteiro, controladores de tráfego passaram a protestar contra a falta de investimento em equipamentos. Em dezembro, uma pane técnica prejudicou a comunicação entre operadores e pilotos em várias partes do Brasil. Por três dias, aviões não podiam partir dos aeroportos de Brasília e Belo Horizonte. Em São Paulo, a maior parte das decolagens também foi suspensa. A pane foi resolvida, mas o chamado caos aéreo durou até 2007.
Culpa controversa
Em 2011, Lepore e Paladino foram condenados a três anos de prisão, por crime de negligência. Recorreram da sentença, mas em 2015 acabaram condenados em última instância pelo Supremo Tribunal Federal. Em 2017, a Justiça Federal de Mato Grosso decretou a prisão dos dois – que estão nos EUA, e portanto não foram presos. Nos Estados Unidos, a FAA (Federal Aviation Administration) não aplicou nenhuma punição aos pilotos. A licença de Jan Paladino foi renovada pela FAA em abril de 2017. A de Joe Lepore, em 2014.
No Brasil, os operadores de voo receberam sanções em um julgamento interno da Justiça Militar. As penas não foram divulgadas.
Um número mortal
Já houve outras colisões em pleno ar na história da aviação – desde 1922, foram cerca de 50. O pior acidente desse tipo ocorreu dez anos antes do impacto entre o Legacy e o Boeing. Em 12 de novembro de 1996, um avião Ilyushin da Kazakhstan Airlines voava de Shymkent, no Cazaquistão, a Nova Déli, quando colidiu contra um Boeing 747 da Saudi Arabian Airlines. No total, foram 349 mortes – o terceiro pior acidente da história em número de vítimas, atrás apenas da colisão em solo no aeroporto de Tenerife e da queda do voo 123 da Japan Airlines. O acidente foi causado por uma série de erros semelhante ao desastre brasileiro. Detalhe perturbador: assim como o Boeing da Gol, o avião da Kazakhstan era um voo 1907.
O jatinho que derrubou um Boeing Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
Nenhum comentário:
Postar um comentário