quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

O jatinho que derrubou um Boeing

Todas as semanas, o empresário Rolf Ferdinando Gutjahr voava de Curitiba, onde morava, até Manaus, sede de sua fabricante de componentes para televisores. Nas sextas-feiras, voltava para casa. Em 29 de setembro de 2006, no aeroporto de Manaus, Rolf fez o que sempre fazia: ligou para a esposa, Rosane, minutos antes de embarcar. “Nêga”, disse à mulher, usando o apelido afetivo, “o voo vai atrasar uns minutinhos. Quando fizermos escala em Brasília, te ligo de novo”. Então se despediram.

Rolf estava prestes a cruzar céus confusos. Naquela época, voar estava cada vez mais difícil no Brasil. Só em 2005, o movimento de passageiros em aeroportos havia aumentado 19% – mas os investimentos no setor não haviam acompanhado esse crescimento. Pelo contrário: no mesmo período, a verba destinada a infraestrutura de controle aéreo, equipamentos e formação de equipes caiu pela metade. Em março daquele ano, os operadores de voo em Brasília haviam entrado em greve. protestando contra o mau estado dos equipamentos – todos os voos no País foram atrasados em três horas. Desde 2004, a Força Aérea Brasileira alertava o governo sobre a iminência de um apagão aéreo. No entanto, até o dia em que Rolf embarcou no Boeing da Gol, nada havia sido feito para evitar o caos.

Eram 13 horas e 35 minutos em Manaus quando o voo 1907 da Gol, prefixo Golf Tango Delta, decolou do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes. Além de Rolf, havia outros 147 passageiros e seis tripulantes. Ao atingir 37 mil pés, o comandante Décio Chaves Júnior e o copiloto Thiago Jordão acionaram o piloto automático do Boeing 737-300. Tranquilos, começaram a conversar sobre amenidades . Assim ficaram durante as horas seguintes.

Agora eram quase cinco da tarde. O Boeing sobrevoava uma região de floresta tropical no município de Peixoto de Azevedo, no Mato Grosso. Os voos ali eram supercontrolados pelo Cindacta-1, o Centro de Controle do Tráfego Aéreo de Brasília. Em sua câmera digital, o comandante Chaves mostrava fotos que havia tirado em uma recente viagem aos Estados Unidos.

“Que boa moto”, exclamou o copiloto.
“Vê o carro”, indicou o comandante.

Nesse momento, houve um estrondo, um solavanco sacudiu o cockpit e a ponta do Boeing guinou para a esquerda.“Rapaz do céu, não acredito que isso está acontecendo!”, gritou o piloto, incrédulo, a voz quase abafada pela ensurdecedora sequência de alarmes. Um terço da asa esquerda havia desaparecido. Chaves agarrou os controles, para tentar estabilizar a aeronave. Nessa hora, contudo, o avião já estava caindo.

Erros no céu e na terra

O avião que se chocara contra a asa do Boeing era um Legacy 600, pilotado pelos americanos Joe Lepore e Jan Paladino. Fabricado pela Embraer, o jato fora recém-adquirido pela ExcelAire, uma empresa de táxi-aéreo americana. Os aviadores americanos vieram ao Brasil com a missão específica de buscar a aeronave. O plano era transladá-la de São José dos Campos (SP) para Fort Lauderdale, na Flórida, com escala programada em Manaus.

Por volta das 14 horas, haviam embarcado com cinco passageiros: dois executivos da ExcelAire, dois representantes da Embraer e um jornalista. No escaninho do cockpit, estava a carta de voo – um mapa do trajeto que o jato deveria percorrer, com todas as mudanças e desvios necessários para evitar o caminho de outras aeronaves. A carta fora elaborada por uma empresa de aviação americana, a Universal Weather & Aviation. O Legacy devia começar a viagem a 37 mil pés e descer para 36 mil pés assim que entrasse no espaço aéreo de Brasília.

O primeiro passo na sucessão de erros que levaram à tragédia ocorreu com o Legacy ainda no solo. A torre de São José dos Campos informou que o jato poderia voar a 37 mil pés – mas não avisou que a altitude deveria ser alterada ao longo da viagem. Os pilotos entenderam que poderiam voar daquela forma até Manaus. O equívoco seria facilmente corrigido se houvessem consultado os papéis em seu escaninho. “Eles estavam com a carta de voo na cabine, mas não se deram ao trabalho de checá-la”, sustenta o escritor Ivan Sant’Anna, autor de Perda Total (Editora Objetiva, 2011), que narra esse e outros acidentes aéreos brasileiros.

<strong>No solo da selva, foi achada a caixa preta.</strong>Ho New/Reuters

Após a decolagem, os americanos acionaram o piloto automático – e só então começaram a estudar a fundo os controles e os programas da aeronave. Até aquele dia, os dois nunca haviam pilotado sozinhos um Legacy. Haviam treinado durante os últimos quatro dias, mas sempre com a ajuda de instrutores.

Na decolagem, os americanos não perceberam que um dispositivo importante estava desativado: o Traffic Collision Avoidance System, ou TACS. Esse sistema detecta aeronaves em sentido contrário e indica as manobras necessárias para evitar uma colisão. Outro erro veio logo em seguida: durante o voo, um dos americanos desligou o transponder, sistema que envia dados sobre a localização da aeronave para as torres de controle, incluindo a altitude exata. Com ambos os dispositivos desligados, outros aviões não podiam perceber o Legacy. Para as torres de comando, ele era apenas um pontinho aparecendo e sumindo nos radares.

Cerca de 20 minutos depois, os americanos entraram em contato com um operador de voo em Brasília – que respondeu alertando que o transponder estava desligado. Mas o operador falava um inglês macarrônico. “Não faço a menor ideia de que diabo ele disse”, comentou Paladino. Minutos depois, em Brasília, o controle passou a um segundo operador, o sargento Jomarcelo Fernandes dos Santos, cujo inglês era igualmente ruim. Para piorar, Jomarcelo estava atarefado controlando outros dois voos.

Quando Paladino entrou em contato, informando que estavam a 37 mil pés, o operador nada comentou. Na tarde de sol, as duas naves se aproximavam a uma velocidade somada de 1,6 mil quilômetros por hora. Se o sistema anticolisão do Legacy estivesse ativado, as aeronaves detectariam uma à outra. Com o TACS desligado, as duas tripulações não tinham como notar o impacto iminente. Às 16 horas e 56 minutos, a ponta da asa esquerda do Legacy trincou a do Boeing. “O que diabos foi isso?”, exclamou Lepore. Logo, os americanos perceberam que teriam de fazer um pouso de emergência: o Legacy estava com a ponta da asa esquerda arrancada e sem parte da cauda. Mesmo assim, conseguiu voar até a base aérea de Cachimbos.

<strong>O Boeing e o Legacy, sem saber, vinham na contramão um do outro.</strong>Sebastião Moreira / Agência Estado/Reprodução

No momento do impacto, a maioria dos passageiros no Boeing provavelmente estava em seus assentos, lendo ou descansando. Na batida contra o Legacy, ninguém morreu. Logo após, contudo, o avião despencou dando voltas como um parafuso e começou a se desintegrar ainda no ar. A queda durou 63 segundos, e é provável que a maior parte dos passageiros tenha desmaiado antes do impacto. A morte dos 154 ocupantes trouxe à tona o emaranhado de problemas que atravancava os céus do Brasil. Por conta do acidente, oito operadores foram afastados de suas funções. No País inteiro, controladores de tráfego passaram a protestar contra a falta de investimento em equipamentos. Em dezembro, uma pane técnica prejudicou a comunicação entre operadores e pilotos em várias partes do Brasil. Por três dias, aviões não podiam partir dos aeroportos de Brasília e Belo Horizonte. Em São Paulo, a maior parte das decolagens também foi suspensa. A pane foi resolvida, mas o chamado caos aéreo durou até 2007.

Culpa controversa

Em 2011, Lepore e Paladino foram condenados a três anos de prisão, por crime de negligência. Recorreram da sentença, mas em 2015 acabaram condenados em última instância pelo Supremo Tribunal Federal. Em 2017, a Justiça Federal de Mato Grosso decretou a prisão dos dois – que estão nos EUA, e portanto não foram presos. Nos Estados Unidos, a FAA (Federal Aviation Administration) não aplicou nenhuma punição aos pilotos. A licença de Jan Paladino foi renovada pela FAA em abril de 2017. A de Joe Lepore, em 2014.

No Brasil, os operadores de voo receberam sanções em um julgamento interno da Justiça Militar. As penas não foram divulgadas.

<strong>No Legacy, asa intacta (acima) e asa danificada (no alto).</strong>Ho New/Reuters

Um número mortal

Já houve outras colisões em pleno ar na história da aviação – desde 1922, foram cerca de 50. O pior acidente desse tipo ocorreu dez anos antes do impacto entre o Legacy e o Boeing. Em 12 de novembro de 1996, um avião Ilyushin da Kazakhstan Airlines voava de Shymkent, no Cazaquistão, a Nova Déli, quando colidiu contra um Boeing 747 da Saudi Arabian Airlines. No total, foram 349 mortes – o terceiro pior acidente da história em número de vítimas, atrás apenas da colisão em solo no aeroporto de Tenerife e da queda do voo 123 da Japan Airlines. O acidente foi causado por uma série de erros semelhante ao desastre brasileiro. Detalhe perturbador: assim como o Boeing da Gol, o avião da Kazakhstan era um voo 1907.


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