terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Como (e por que) “Parasita” construiu seus cenários do zero

Parasita fez história. O longa sul-coreano foi o primeiro filme de língua não-inglesa a ganhar a categoria de Melhor Filme no Oscar – além de ter levado outros três importantes prêmios, Melhor Direção, Roteiro Original, e, é claro, Melhor Filme Internacional. Os motivos que fizeram a obra de Bong Joon Ho ganhar destaque são muitos: um roteiro imprevisível e surpreendente; uma mistura inusitada de gêneros; uma crítica social inteligente. Mas um elemento do filme em especial pode passar em branco para os espectadores mais desatentos: seus cenários.

A produção se passa quase que inteiramente em dois cenários, que são justamente as casas das duas famílias protagonistas. E ambos foram feitos totalmente do zero, milimetricamente construídos para refletir a mensagem principal do filme. Não à toa o filme também foi indicado ao prêmio de Melhor Design de Produção, que inclui a projeção e montagem dos cenários, mas acabou não vencendo (quem levou foi Era Uma Vez em Hollywood, que recriou Los Angeles dos anos 1960).

Para entender melhor como os cenários de Parasita se relacionam com sua história, alguns spoilers são necessários, então recomendamos que você assista o filme e volte para o texto.

Casa rica, casa pobre

A história central de Parasita você já conhece: uma família pobre se infiltra para trabalhar na casa de uma família rica de forma desonesta, mas as coisas acabam desandando no meio do caminho.

Os Park, uma típica família de classe alta, vivem em uma mansão de encher os olhos. Na trama, ela foi projetada por Namgoong Hyunja, supostamente um renomado arquiteto sul-coreano. Mas ele não existe: quem construiu tudo do zero foi o designer de produção Lee Ha Jun. Em entrevista para o portal IndieWire, Lee e Bong explicaram os detalhes do processo de criação da enorme casa, e por que escolheram projetar tudo e não simplesmente escolher uma mansão qualquer para as filmagens.

O cenário é formado basicamente por quatro ambientes: o piso inferior, que contém a cozinha e a sala de estar em um espaço aberto e conectado, de frente para o amplo quintal verde; o piso superior, onde ficam os quartos; o pequeno porão, que serve como uma dispensa; e o bunker secreto, que só revelado na segunda metade do filme. Somente o piso inferior foi construído e montado totalmente; os outros ambientes foram feitos em estúdio e a edição fez com que tudo parecesse uma coisa só.

No piso inferior, o que mais chama a atenção do espectador é a enorme parede de vidro da sala, que funciona como uma janela para o quintal. A vista é confortável, limpa e muito iluminada. Não à toa, a produção do filme pesquisou o regime de luz solar de vários terrenos antes de começar a construção – eles queriam aproveitar o máximo a luz natural na casa dos Park. E é esse o maior contraste com a casa outra família da trama.

Os Kim vivem em uma casa semi-subterrânea. A única janela do lugar está no nível da rua, e pouquíssima luz entra por ela. Em vez disso, eles tem a visão de uma rua suja, cheia de lixo e insetos desagradáveis. Além disso, o ambiente de toda a casa é escuro, sujo e desorganizado. Ironicamente, a privada é talvez o objeto mais alto da casa, e onde o wi-fi pega melhor. Não poderia haver uma antítese melhor à mansão dos Park – exceto talvez o bunker que fica bem abaixo dela própria, que é uma versão piorada da casa dos Kim.

Mas não é só por conta desse óbvio contraste que a equipe de produção merece reconhecimento. O que muitos não sabem é que a “vila” em que os Kim moram, formadas por diversas casas em condições igualmente desagradáveis, também foi feita inteiramente do zero. Ela foi inspirada em bairros pobres que realmente existem em Seul, na capital da Coréia do Sul, mas foi montada totalmente pela produção após muito estudo nessas regiões. Obviamente, não foi uma tarefa fácil.

A vila é muito menos organizada que a casa dos Park, exige muito mais elementos e cuidados. Mas há um motivo para a equipe ter feito tudinho ao invés de ter escolhido um local que já existe: o ambiente tinha que ser perfeito para a chocante cena da tempestade bíblica que alaga a região, destruindo a casa dos Kim. E os esforço funcionou: o filme tem nessa cena um de seus maiores pontos de virada extremamente simbólico, e o design do cenário é essencial para isso.

Não é só no contraste que os cenários se destacam. Por todo o filme – incluindo em cenas que os personagens andam pelas ruas da cidade – escadas estão presentes. A escada é uma das metáforas mais presentes na trama, desde seus cartazes de divulgação, e não à toa: ela representa a ascensão social, a diferença dos que estão “embaixo” e “em cima”.

A casa dos Park também foi projetada de forma que os personagens conseguissem se esconder uns dos outros – fator central para um filme que trata de, bem, “parasitas” que vivem na casa dos outros sem que os donos percebam. Essa estruturação é essencial, por exemplo, na cena em que a antiga empregada volta à casa e o filme assume um novo rumo. Isso porque quase todo o elenco do filme se reúne nos mesmos cenários – mas metade nem sabe que a outra está lá, escondida nas paredes, túneis e escadas intermináveis da mansão.

Há muitos outros detalhes escondidos dos cenários que o espectador pode relacionar com o roteiro – os móveis, as obras de arte, as cores. Tudo em Parasita transparece a genialidade da história que, merecidamente, se consagrou como a grande vencedora do Oscar de 2020.


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