Catarina teve uma adolescência difícil: aos 16 anos, viu sua irmã mais velha morrer e foi obrigada pelos pais a se casar com o cunhado viúvo. Ela se recusou a virar noiva e iniciou uma greve de fome. Decidida, convenceu os parentes e passou a morar num convento. No entanto, mesmo com o fim da briga familiar, a menina continuou insistindo em não comer. Passava semanas à base de pão e água, agora por motivos religiosos. Tinha dias em que seu único alimento era a hóstia da missa. Frágil e vítima de anorexia, faleceu muito jovem, aos 33 anos, após sofrer um AVC.
A história de Catarina poderia muito bem se passar em 2020 e ser compartilhada em qualquer rede social. Mas ela viveu na Itália entre 1347 e 1380. Após sua morte, foi canonizada, ganhou o nome de Santa Catarina de Siena e o título de padroeira da Europa.
Ela, aliás, é apenas uma das 250 santas italianas que tiveram na biografia algum episódio típico de transtorno alimentar, quadro psiquiátrico marcado por dificuldades em manter refeições saudáveis e equilibradas ao longo de determinado período da vida.
Apesar de essas condições não serem um fenômeno moderno, é inegável que elas explodiram nas últimas décadas: estima-se que doenças como anorexia e bulimia (saiba mais sobre as principais clicando aqui) acometam cerca de 2% da população mundial.
“No Brasil, alguns dados indicam que esses problemas atinjam 4,6% das pessoas, o dobro do encontrado em outros lugares”, relata a psicanalista Joana de Vilhena Novaes, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Os especialistas ainda apontam uma mudança de perfil: esses quadros, antes restritos a jovens do sexo feminino de classe média ou alta, começam a se tornar preocupantes em homens, pessoas mais velhas e moradores da periferia. Mas o que está por trás desse fenômeno?
Cobrança por um corpo perfeito
Os transtornos alimentares são a ponta do iceberg de algo mais abrangente e preocupante que assola toda a sociedade: nossa relação com a comida nunca foi tão ruim. Vivemos num mundo com índices alarmantes de sobrepeso e obesidade — mais de 50% dos brasileiros estão com quilos a mais, por exemplo.
Ao mesmo tempo, seja em capas de revista, seja nas redes sociais, há uma eterna cobrança por um corpo perfeito, sem nada fora do lugar. “Estamos dentro de uma cultura neurótica, com uma pressão social constante pela magreza”, analisa a nutricionista Marle Alvarenga, idealizadora do Instituto Nutrição Comportamental, em São Paulo.
Ao mesmo tempo, dá pra notar certo desprezo coletivo pelas refeições: nossos almoços e jantares ficam cada vez mais curtos e impessoais. Comemos olhando para a tela de celulares, computadores e televisões. Os pratos já aparecem prontos: basta pedir pelo aplicativo que o motoboy entrega na porta de casa ou tirar o congelado da geladeira e botar dois minutos no micro-ondas.
“E isso sem contar a total perda de autenticidade: não temos ideia de como muitos alimentos são preparados. O que é um nugget senão um monte de conservantes, estabilizantes e um pouco de frango?”, questiona o historiador Henrique Soares Carneiro, coordenador do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação da Universidade de São Paulo (USP).
Para piorar, um grande volume de produtos industrializados peca no quesito saúde: estão empanturrados de sal, gordura e açúcar, ingredientes que dão sabor e cujo excesso pode promover ganho de peso, hipertensão, colesterol alto, diabetes…
“Esses alimentos estimulam demais nossas papilas gustativas e nos deixam com vontade de comer de novo para repetir aquela mesma sensação”, destrincha a nutricionista Ana Carolina Pereira Costa, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (IPq-HC).
Alimentos mocinhos e vilões
Ironicamente, a exigência do corpo perfeito leva a um cenário oposto: a preocupação exagerada com o valor nutricional de cada ingrediente. O pãozinho vira apenas um reduto de carboidratos. Brócolis só valem a pena por serem ricos em antioxidantes. E por aí vai.
“Não podemos nos esquecer de que cada comida conta uma história e é resultado da ancestralidade, da cultura e da forma de viver de um povo”, lembra a chef Janaína Rueda, que está à frente do renomado restaurante Bar da Dona Onça, em São Paulo.
De 2015 a 2018, Janaína liderou uma reformulação nos cardápios das escolas públicas paulistas. “Junto com a Secretaria de Educação, treinamos 1 823 merendeiras de 2 200 escolas, que faziam comida diariamente para quase 2 milhões de alunos”, calcula.
Nesse meio-tempo, saíram de cena os industrializados, que foram substituídos por alimentos frescos. Por trás de cada receita, havia um ensinamento às crianças e aos adolescentes. “O projeto, porém, foi cancelado e tudo voltou a como era antes”, conta a chef.
Essa neura com a saúde, aliás, tem outro efeito colateral: a noção maniqueísta de que existem alimentos mocinhos e vilões. Tem hora que o glúten é o responsável pelos males que atingem a humanidade. Depois, a culpa recai sobre a lactose. Em paralelo, aparece a dieta detox como resposta para tudo. Na sequência, basta apostar no óleo de coco ou nos suplementos de magnésio. Parece que a gente está sempre à procura de respostas mágicas para problemas complexos.
Enquanto isso, a verdade segue diante de nosso nariz: uma alimentação equilibrada e variada, junto da prática regular de atividade física, até nos permite regalias à mesa de vez em quando. “O que é mais saudável: um bolo de chocolate ou uma maçã? Depende do contexto”, raciocina Ana Carolina. Se você estiver numa festa de aniversário cheio de vontade de experimentar um pedaço de bolo, comer apenas uma fruta não vai deixá-lo satisfeito… “A saúde envolve corpo, mente e a nossa relação com os outros”, completa.
Familiares e amigos contra os transtornos alimentares
Ok, deu pra entender que cozinhas e salas de jantar não são ambientes tão cômodos e aconchegantes quanto antigamente. Todo mundo é de alguma maneira afetado por isso no dia a dia. Mas por que somente uma parcela mínima das pessoas vai desenvolver um transtorno alimentar?
“Aqui entram na conta fatores genéticos, questões familiares e psicológicas, que se somam e levam ao desenvolvimento de quadros como a anorexia ou a bulimia”, responde Marle Alvarenga. Indivíduos cujos pais são muito rígidos e preocupados com a aparência, por exemplo, têm maior tendência a desenvolver esses quadros.
Para prevenir essas condições ou evitar seu agravamento, devemos prestar atenção em como encaramos os momentos à mesa e buscar ajuda de um profissional quando necessário. Em muitos casos, familiares e amigos podem dar o suporte e levar o paciente para a primeira consulta, pois ele não consegue visualizar o problema.
“Estima-se que aconteça uma demora de três a cinco anos entre o início dos sintomas e o diagnóstico”, informa o psiquiatra Eduardo Aratangy, supervisor do IPq-HC. Tempo demais desperdiçado: sabe-se que o acompanhamento feito por uma equipe composta de médicos, psicólogos e nutricionistas é essencial para apaziguar e reverter os distúrbios.
Claro que todos nós também podemos (e devemos) tomar medidas para melhorar nossa relação com a comida. O primeiro passo é entender que cafés da manhã, almoços e jantares são um momento sagrado para o corpo. Dentro de sua agenda de compromissos, planeje os pratos com cuidado e carinho.
Na hora do preparo, dê preferência aos ingredientes frescos — se forem frutas e verduras, veja se está na temporada de colheita, o que garante mais sabor e nutrientes. Por fim, visite feiras livres, mercados e empórios. “Comer bem não é necessariamente caro”, lembra Joana Novaes.
Sim, a simplicidade é um ingrediente-chave para refeições mais completas e felizes. Reflita e… bom apetite!
Transforme a sua relação com a comida Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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