Ela teima em parecer coisa do passado, mas nunca esteve tão presente. Alastrou-se em silêncio pelo Brasil até virar uma verdadeira epidemia na última década. Entre 2010 e 2018, os casos registrados de sífilis adquirida sexualmente saltaram de 2,1 para 75,8 a cada 100 mil brasileiros — um aumento de incríveis 3 600%. “É uma doença de fácil diagnóstico e fácil tratamento, mas continua muito prevalente. Há uma questão de conscientização que ainda precisa ser enfrentada”, analisa o ginecologista José Eleutério Júnior, presidente da comissão de doenças infectocontagiosas da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
O crescimento é explicado por pelo menos dois fatores. Por um lado, o maior acesso aos testes rápidos no SUS (Sistema Único de Saúde) permite flagrar episódios que antes passavam despercebidos. Por outro, a bactéria responsável pela doença circula mais por aí à medida que as pessoas negligenciam cuidados com o sexo.
Na visão de Eleutério Júnior, hoje os brasileiros se sentem mais seguros e menos vulneráveis às doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), chamadas pelos especialistas de infecções sexualmente transmissíveis (IST). O sucesso no tratamento do HIV, o vírus da aids, teria tirado de cena um medo que antes estimulava mais precaução contra essas enfermidades, algumas delas potencialmente fatais.
Mas a máxima do prevenir é melhor que remediar nunca caduca em matéria de IST. A vilã da sífilis é a bactéria Treponema pallidum, que, sorrateira, ataca o organismo em fases e pode enganar a vítima, dando a falsa impressão de ter ido embora do pedaço.
Os primeiros sintomas também confundem: feridas nos genitais, erupções cutâneas e ínguas, às vezes confundidas com alergias ou outras infecções. Como costumam desaparecer sozinhos, é comum que as pessoas não deem bola nem procurem o médico. Só que a bactéria continua ali, na miúda.
Esse período de latência pode inclusive durar décadas: a doença fica assintomática, mas ainda se espalha pelo corpo e é transmitida para outras pessoas. Após anos na surdina, porém, ela volta ao ataque, chegando a causar lesões no cérebro, no coração, nos olhos e até levar à morte.
A boa notícia é que é moleza detectar a sífilis. O teste rápido é oferecido de graça pelo SUS e não exige sequer laboratório: basta coletar o sangue perfurando um dedo e colocá-lo em um kit distribuído aos serviços de saúde. Em meia hora, sai o resultado. O grande desafio é convencer pessoas sem nenhum sintoma a fazer o exame.
Segundo os especialistas, o ideal é rastrear as ISTs anualmente, sobretudo no caso de pessoas sem parceiro fixo, que estejam iniciando a vida sexual ou planejando engravidar.
Sífilis congênita: uma ameaça durante a gestação
Por falar em gravidez, a sífilis é particularmente ameaçadora nessa fase. É que a gestante, se estiver infectada, pode transmitir a bactéria para o bebê pela placenta, abrindo caminho à sífilis congênita. Nessas circunstâncias, a infecção é capaz de causar malformação, aborto espontâneo ou parto prematuro.
O recém-nascido que sobrevive a esses infortúnios ainda está mais sujeito a problemas respiratórios e neurológicos. Se porventura o bebê não for infectado durante a gestação, também corre o risco de pegar a bactéria no momento do parto.
Não é à toa que um bom acompanhamento pré-natal precisa buscar e identificar a presença da malfeitora. Mas nem sempre isso acontece por aqui. “Em alguns estados, você vê mais sífilis congênita do que sífilis na gestante. Isso é impossível”, nota Eleutério Júnior, citando os números do Ministério da Saúde, que mede os casos em cada unidade da federação.
“São dados que mostram a falta de cobertura adequada em algumas regiões. Muitas vezes, as mulheres até fazem pré-natal, mas não recebem o diagnóstico”, complementa o ginecologista.
Na verdade, o Brasil não está sozinho diante desse avanço da sífilis. Embora tenhamos registrado um aumento rápido e expressivo, até os países desenvolvidos notificaram nos últimos anos mais casos da doença adquirida e congênita, além de outras ISTs.
Para o ginecologista Mauro Romero Leal Passos, chefe do Setor de DST da Universidade Federal Fluminense, um dos principais motivos é a educação sexual insuficiente. “A sexualidade está mais difundida e hoje as pessoas transam com desconhecidos no primeiro encontro, só que, ao mesmo tempo, elas estão deixando de lado a camisinha. O não uso do preservativo se banalizou”, interpreta.
Receando apenas uma gravidez indesejada, muitos jovens e adultos focam só nos anticoncepcionais, se esquecendo de que o principal escudo contra a sífilis e outras ISTs é a camisinha. Essa é uma mensagem que precisa ecoar o ano todo.
“As campanhas de prevenção costumam acontecer na época do Carnaval, quando se tem a ideia de que as pessoas transam mais. Não é verdade: não existe sazonalidade para DST”, alerta Passos.
Agora, se por acaso vier um diagnóstico de sífilis, saiba que não é o fim do mundo. Tem, sim, tratamento: doses do antibiótico penicilina benzatina. O Brasil já sofreu com o desabastecimento do remédio em 2017 — por se tratar de um medicamento barato, ele não seria tão interessante para as farmacêuticas —, mas hoje a situação está controlada.
“Diferentemente de outras DSTs, a sífilis não conta com vacina. Sexo é prazeroso, mas é preciso ter noção dos riscos”, afirma Eleutério Júnior. Quem não quiser engrossar a fila da epidemia deve botar em prática o uso do preservativo e fazer os exames periódicos. Seu corpo, o mundo e até a próxima geração agradecem.
Sífilis: a epidemia não para. Como evitar? Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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