Hoje, 20 de março, começou a primavera na Itália. Estes dias que marcam o fim do inverno costumam ser bastante celebrados. A natureza e as pessoas parecem renascer em sincronia. Das árvores peladas e castigadas pelo frio, germinam folhas de um verde intenso, enquanto flores multicoloridas brotam nos galhos e gramados. Aos poucos, as praças e os parques vão se enchendo de gente que não via a hora de poder passear sem casaco.
Tudo isso é mágico para alguém acostumado com um país tropical, em que as estações não são lá tão definidas. Mas, em 2020, com um terrível surto de Covid-19 assolando a Itália, não há magia nem beleza por aqui. Só apreensão, cautela e anseio por dias melhores. Nas ruas desertas, as flores nascem sem quase ninguém para admirá-las.
Os números mais recentes da epidemia italiana assustam. Segundo o boletim desta quinta (19), que o Departamento de Proteção Civil publica diariamente, o número total de casos confirmados no país já havia passado de 41 mil, e o de mortos, de 3,4 mil. Nas províncias mais afetadas, Bérgamo (4,6 mil casos) e Brescia (4,2 mil), ambas na região da Lombardia (19,8 mil), não há mais leitos de UTI — eles começam a ser improvisados nos corredores.
É desesperador pensar no estado psicológico dos profissionais de saúde, que arriscam a própria pele em jornadas de trabalho extenuantes, muitas vezes se vendo obrigados a literalmente decidir quem vive e quem morre. Com quase 2,5 mil pacientes com coronavírus em terapia intensiva no país, faltam respiradores e até medicamentos começam a escassear. Por toda a península itálica, mas principalmente no norte, onde vivo, que reúne as áreas mais atingidas, o sistema público de saúde está à beira do colapso. Já está decretado que pacientes com mais de 80 anos não receberão respiradores artificiais em caso de superlotação.
Em Bérgamo, a situação chegou a um ponto tão crítico que os cemitérios e crematórios não estão mais dando conta de tanto cadáver. Um vídeo que viralizou mostra caminhões do exército italiano transportando corpos de falecidos pelo coronavírus para as cidades de Bolonha e Módena. Como qualquer tipo de reunião coletiva foi sumariamente proibida pelo governo em todo o território nacional, os familiares não podem sequer enterrar seus mortos — idosos, em sua maioria. Só suas cinzas voltam do hospital.
Para tentar conter a escalada assustadora do Covid-19 pela península, que virou o olho do furacão da pandemia mundial, o premiê Giuseppe Conte instituiu no dia 11 duras medidas restritivas, que travaram o país. A Itália se tornou a primeira nação ocidental a colocar toda sua população em quarentena e ordenar o fechamento de praticamente todas as atividades comerciais. Outros países começam a estudar respostas parecidas para frear o contágio.
Até no mínimo 3 de abril – e essa data pode ser adiada –, eu, minha família e 60 milhões de italianos só podemos sair de casa por motivos de extrema necessidade. São permitidos deslocamentos dentro ou fora das cidades apenas para quem for para trabalhar, cuidar da saúde ou comprar comida e remédios. Mesmo assim, é preciso estar munido de uma “autodeclaração” disponibilizada pelas autoridades que informa a causa da saída.
Se eu resolver sair só para contemplar as flores e for parado pela polícia sem o documento em mãos, corro o risco de ir para a prisão por até três meses ou tomar uma multa de 206 euros. Estabelecimentos impedidos de funcionar pela normativa vigente que descumprirem a lei e abrirem as portas podem ser interditados por até um mês. Escolas, universidades, cinemas, museus e teatros foram os primeiros a fecharem as portas, poucos dias após a confirmação do primeiro caso na Lombardia, a Wuhan italiana, em 20 de fevereiro — um mês atrás.
A estratégia do governo foi isolar, em primeiro lugar, as cidades onde o foco do surto começou, em torno do município de Codogno. Ao perceber que a medida não tinha sido o suficiente e que o vírus ainda se espalhava depressa, Conte ampliou a zona vermelha, que passou a abranger a Lombardia inteira e mais 14 províncias de outras quatro regiões vizinhas. Isso foi em 8 de março. Mas, nos primeiros dias da emergência, ainda não era claro o tamanho do problema.
Provavelmente sem ter muita noção das consequências desastrosas que isto traria, houve uma debandada de pessoas que “escaparam” antes que as divisas fossem fechadas, e levaram consigo o Covid-19 para outras partes da Itália. Com os dados mostrando o avanço e espalhamento geográfico do vírus, no dia seguinte, 9 de março, o governo aboliu as zonas vermelhas e transformou o país inteiro em uma “zona laranja”. Na prática, as medidas restritivas de quarentena e distanciamento social passaram a valer em todo o território.
Há quem diga que a decisão de congelar o país veio tarde demais: àquela altura, mais de 9,1 mil italianos já haviam sido infectados. No começo, quando a ilusão de que a doença era “só uma gripe” estava bem mais difundida, antes de seus efeitos nefastos se escancararem, muitos contestaram e desrespeitaram as normas, agravando a situação. No geral, italianos são pessoas bem apegadas a seus hábitos e tradições. Quando algo ou alguém impõe mudanças profundas, perdem ainda mais da paciência que já costuma ser meio curta.
Com o tempo, porém, a vida sob a emergência nacional mais grave desde a 2a Guerra Mundial tornou-se uma unanimidade. Por aqui, ninguém questiona mais a necessidade ou a eficácia das medidas adotadas. Elas se tornaram consenso.. Aos poucos, sair às ruas de máscaras e luvas tornou-se corriqueiro, e encontrar apenas farmácias, supermercados e mais um punhado de estabelecimentos essenciais funcionando virou algo normal. Restaurantes até podem operar, mas só fazendo delivery.
Manter distância mínima de um metro entre as pessoas agora é praxe. Só membro da família poder entrar no mercado para fazer compras. Mesmo nos negócios de primeira necessidade que permanecem abertos, o acesso é restrito: a entrada é controlada para evitar aglomerações no interior. É preciso aguardar sua vez na calçada. Sair às ruas aqui em Turim, onde moro há um ano e meio com minha esposa e, mais recentemente, com nosso filho de três meses, se tornou uma experiência bem diferente da habitual.
Principalmente agora, que os casos estão disparando por aqui (já são mais de mil confirmados na província), o que antes era uma saída rápida e desprecavida agora virou uma incursão temerária. Quase uma operação, em que cada movimento deve ser pensado para evitar ao máximo o contato com o vírus. O bebê acaba de se recuperar de uma bronquiolite. Todo cuidado é pouco.
É muito difícil não se deixar tomar pelo medo, seja pela crise de saúde pública atual, seja pela recessão econômica futura, enquanto se está isolado dentro de casa. Diante de tantas notícias dolorosas, até as famosas serenatas nas varandas dos prédios perdem um pouco o sentido. Como cantar após ver as cenas de Bérgamo e de saber da situação nos hospitais?
O sentimento agora é mais de luto e de estupor, de buscar força na coletividade e apoio no governo. Por aqui, não resta nenhuma dúvida de que se trancar em casa neste momento é uma obrigação cívica. E que o sofrimento da Itália sirva de lição para que o Brasil evite a todo custo esse cenário, parando tudo enquanto é tempo, com os casos ainda em 651. É impossível evitar que o número aumente – mas é possível evitar que ele saia completamente de controle.
Isolados em quarentena, aguardamos o tão esperado pico da epidemia e a consequente diminuição dos casos, que os especialistas preveem para a semana que vem. Estamos perdendo o belo desabrochar das flores lá fora. Mas que a chegada da primavera dê forças à Itália para resistir pelo tempo que for necessário.
Todo inverno, por mais longo que seja, um dia chega ao fim. Nos números do surto, já se vê o despontar de uma pequena primavera. São mais de 4,4 mil pessoas curadas do Covid-19. Entre elas, há uma senhora de 95 anos, residente de Módena, que ganhou o apelido de “Vovó Esperança”. Quando tudo isso acabar, nós e a natureza estaremos mais fortes.
Nosso repórter em Turim conta como é a vida na Itália assolada pela Covid-19 Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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