“O meu amigo aqui gostaria de pedi-la em casamento”, disse um dos sequestradores. A aeromoça respirou fundo, contendo as lágrimas. Sabia que não podia demonstrar pânico. Mais de uma centena de vidas dependiam de sua fleuma. Quando finalmente respondeu, sua voz estava perfeitamente calma, polida, sob controle: “Veja bem, este não me parece o momento adequado”. Por sorte, o pretendente aceitou a recusa sem matar ninguém.
A insólita proposta de matrimônio ocorreu durante o sequestro do voo 847 da TWA, em 1985 – e a fleumática aeromoça era a alemã Uli Derickson, cuja presença de espírito ajudou a salvar a vida de quase todos os 139 passageiros a bordo. O voo havia partido de Atenas em 14 de junho, com destino a San Diego, Califórnia, e a maior parte dos passageiros era americana. Poucos minutos após a decolagem, Uli se preparava para servir drinques e refrigerantes quando dois homens pularam para o corredor, armados com uma pistola e duas granadas, gritando palavras em árabe. Uli tentou falar com eles em inglês, mas logo percebeu que nenhum deles a entendia direito. Nervosa, soltou algumas palavras em alemão. Por coincidência, um dos sequestradores havia trabalhado como imigrante na terra natal de Uli. A comissária de bordo se tornou, assim, a única pessoa na aeronave capaz de se comunicar com os raptores. Começavam para ela três dias de heroísmo e horror.
Os dois sequestradores eram libaneses xiitas, envolvidos na complicada guerra civil que destroçava o Líbano na época. O terrorista germanófono se chamava Mohamed Hammadi; o nome do outro jamais foi descoberto. O objetivo do sequestro era forçar a libertação de 766 xiitas aprisionados pelo exército de Israel. Os Estados Unidos eram aliados fiéis dos israelenses – daí o plano de raptar um avião cheio de americanos. Enquanto as exigências eram transmitidas por rádio às autoridades, os sequestradores obrigaram o Boeing a fazer um longo vaivém sobre o Mar Mediterrâneo. Primeiro, o voo foi desviado para o aeroporto de Beirute, onde os sequestradores receberam um reforço de mais 12 terroristas. Depois, o avião zarpou para Argel, capital da Argélia; dali retornou ao Líbano. Durante esse zigue-zague, coube à comissária de bordo impedir uma chacina.
Uli logo percebeu que a comunicação era o seu único trunfo. E ela usou a carta de forma magistral. Enquanto aguardavam a chegada a Beirute, ofereceu-lhes chá e puxou conversas sobre o Alcorão. Apontou os tênis que um dos raptores usava e fez uma piadinha: a marca era americana. Os terroristas sorriram. Perguntaram sobre a vida pessoal de Uli; ela respondeu que tinha um filho de 7 anos. “Você devia então estar em sua casa, com sua família”, disse-lhe Mohamed. Na primeira parada em Beirute, Uli convenceu os raptores a liberarem as mulheres mais velhas e as crianças (20 passageiros, ao todo).
Enquanto o avião ia rumo a Beirute pela segunda vez, os terroristas resolveram demonstrar que não estavam blefando. Arrancaram o braço de um assento, espancaram o jovem fuzileiro naval Robert Stethem e deram-lhe um tiro na cabeça. Pareciam prestes a matar mais gente. Uli teve uma reação inesperada: sentada em um banco, começou a entoar uma antiga canção de ninar alemã. Os sequestradores se acalmaram – e pouco depois um deles fez a inacreditável proposta romântica.
O suplício de Uli terminou na segunda parada em Argel. Lá, os raptores resolveram libertar 65 reféns, incluindo a comissária – os outros 30 só seriam soltos na terceira parada em Beirute. Antes de descer os degraus do avião, Uli deteve-se um momento para vestir o colete de comissária. Durante as horas de terror, tivera de ficar em mangas de camisa, mas quando caminhou rumo à liberdade estava perfeitamente uniformizada. Mohamed foi preso, mas conseguiu fugir (leia texto abaixo).
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Redemoinho libanês
Entre 1975 e 1990, a Guerra Civil devastou o Líbano. O conflito começou quando milícias palestinas, expulsas da Cisjordânia por Israel, passaram a usar o país como base. A guerra foi envolvendo grupos xiitas, sunitas e cristãos, culminando com a invasão do Líbano por Israel em 1982. Segundo o FBI, os dois raptores que tomaram o Boeing 727 eram membros do grupo xiita Hezbollah, mas a organização nega até hoje ter participado do sequestro. Após a libertação de Uli, o governo libanês negociou o destino dos derradeiros reféns, que foram libertados em 30 de julho. Em 1987, Mohamed Hamadi foi preso na Alemanha e condenado à prisão perpétua. Foi posto em liberdade condicional em 2006 e fugiu para o Paquistão. O FBI procura até hoje seus cúmplices.
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