terça-feira, 3 de novembro de 2020

A relação entre um evento geológico e o resultado das eleições dos EUA

Se você acompanhou o noticiário nos últimos dias, sabe que as eleições norte-americanas terminam nesta terça-feira (3/11) – e que elas são muito mais complicadas do que as nossas.

Para começar, não há um único dia de pleito: mais de 100 milhões de norte-americanos votaram antecipadamente em 2020. Por lá, ainda dá para votar por correio, o que torna a apuração mais complexa e demorada.

Mas outro ponto, que causa um estranhamento ainda maior, é o fato de as eleições americanas serem definidas pelo voto indireto, por meio de um colégio eleitoral composto por 538 delegados – quanto mais populoso um estado, mais delegados ele terá.

Dessa forma, o voto dos cidadãos define quantos delegados cada candidato do Partido Democrata e do Republicano terá. O problema é que isso não é proporcional, mas sim um sistema conhecido como “winner takes all” (“vencedor leva tudo”).

Exemplo: suponhamos que, na Califórnia, onde há 55 delegados, a votação seja de 51% para os democratas e 49% para os republicanos. Apesar do resultado acirrado, todos os 55 votos iriam para o candidato democrata. Você pode entender melhor neste texto da Mundo Estranho.

Nos EUA, há estados tradicionalmente republicanos e democratas. Existem também aqueles em que ora votam em um, ora no outro – e se tornam centrais para as estratégias de cada partido. No tuíte abaixo, do jornalista Latif Nasser, dá para ver como cada estado (subdivido por condados) votou nas últimas duas eleições presidenciais. Em vermelho, os condados em que os republicanos venceram; em azul, os democratas:

Nos mapas, é visível que os republicanos dominam boa parte dos estados centrais e do sul dos EUA, como Kansas, Oklahoma, Tennessee e Texas. Os democratas, por sua vez, levam vantagem na Califórnia, Havaí e no nordeste do país.

Mas você reparou em algo curioso no sudeste americano, próximo à Flórida? Em meio a um mar de condados vermelhos republicanos, há um “cinturão” azul democrata, que se estende pelos estados de Arkansas, Louisiana, Mississippi, Alabama, Geórgia, Carolina do Norte e do Sul. Veja:

<span class="hidden">–</span>Latif Nasser/Twitter
<span class="hidden">–</span>Latif Nasser/Twitter

O fenômeno não é exclusividade do século 21 – há registros desse cinturão desde os anos 1970. Mas, afinal, por que isso acontece? Para entender essa discrepância, há quem argumente que seja preciso voltar alguns milhões de anos.

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País submerso

No período Cretáceo, que aconteceu entre 115 e 65 milhões de anos atrás, havia uma grande faixa de mar no atual território dos EUA, dividindo-o em duas massas de terra: Laramidia, no lado oeste, e Appalachia, no leste. Parte do sul do país também ficava debaixo d’água:

<span class="hidden">–</span>Ron Blakey/Northern Arizona University/Reprodução

“Ora, e o que isso tem a ver?”, alguém poderá dizer. Vamos por partes.

Naquela época, já havia milhões e milhões de plânctons vivendo suspensos nos oceanos – que, vale dizer, eram mais quentes e mais elevados do que hoje. Pouco a pouco, esses minúsculos seres morriam e se acumulavam no fundo do mar.

60 milhões de anos atrás, as águas esfriaram – e os oceanos baixaram. Isso deixou para trás toda aquela matéria orgânica dos plânctons mortos, que, a essa altura, havia virado calcário. A erosão, por sua vez, fez com que o calcário entrasse na terra. Com o tempo, o solo se tornou fértil, rico em minerais e mais escuro que o normal. A região, então, foi denominada “Black Belt” (“Cinturão Preto”).

Corta para o século 19, quando os EUA, já independente da Inglaterra, intensificaram a ocupação da região sul. Após expulsarem indígenas que viviam ali, os fazendeiros instalaram grandes propriedades para plantar algodão. A produção deslanchou – a importância desse cultivo para a economia da região foi tão grande que ela também passou a ser conhecida como “Cotton Belt” (do inglês “Cinturão do Algodão”).

Herança histórica

A produção de algodão era feita às custas de trabalho escravo de milhares de africanos e seus descendentes. Isso, inclusive, ajuda entender a Guerra Civil dos EUA (1861-1865), entre os estados do norte, abolicionistas, e os do sul, que desejavam manter o regime escravagista.

Com o fim da guerra, a escravidão foi abolida – contudo, boa parte dos afro-americanos que viviam no Black Belt continuou por lá – seja por não saber para onde ir, seja por não ter dinheiro suficiente para se mudar.

Sendo assim, muitas famílias se estabeleceram na região. Hoje, nos EUA, negros representam 13,4% dos 328 milhões de habitantes do país. Já nos condados do Black Belt, eles compõem 50% (às vezes, 85%) da população.

É por isso que a faixa azul existe: os votos dos negros vão, quase sempre, para o Partido Democrata. Desde 1968, nenhum candidato republicano conquistou mais de 13% desse eleitorado. Na última eleição, 88% do Black Belt votou na democrata Hillary Clinton para a presidência.

O cinturão democrata, contudo, não aparece em eleições mais antigas, mas sim a partir dos anos 1970. Motivo: mesmo com a abolição de 1865, negros ainda enfrentaram diversas leis segregacionistas, sobretudo em estados do sul, que perduraram até os anos 1960. E elas dificultavam (em alguns casos impediam) que eles votassem.

Isso aconteceu porque, nos EUA, os estados têm autonomia para definir os seus processos eleitorais. Daí, valia de tudo: de criar taxas de votação a testes de alfabetização, uma barreira para populações pobres e que não tiveram acesso à escolaridade. “Isso sem falar em táticas de intimidação de linchamento”, escreveu Nasser, no Twitter.

Até o dia da eleição é visto por muitos como uma forma de dificultar a votação, já que ele acontece durante a semana e não há abono para faltar o trabalho. Isso pode prejudicar negros (e latinos) mais pobres, que não podem se dar ao luxo de faltar. Vale dizer: essa lei é de 1845, pré-abolição.

Como se não bastasse, negros e latinos são os que mais esperam em filas nos locais de votação – que estão ficando cada vez mais escassos. É como escreveu a jornalista Cecília Olliveira, em um texto no The Intercept Brasil: “É preciso querer muito votar”.

 

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