Em breve, quando for possível olhar para a pandemia do coronavírus e enxergar algum aprendizado promovido pela reviravolta na ordem mundial, um ramo relativamente novo da medicina estará contabilizado na lista de progressos: os cuidados paliativos. A área pode ser definida como um tratamento multiprofissional, que visa à melhoria da qualidade de vida de pessoas com doenças graves que necessitam de conforto físico, psicológico, espiritual e social.
Os cuidados paliativos são o caminho quando não há perspectiva de cura e manter o bem-estar do paciente, com o máximo de independência possível e sem dor, é o que mais importa. E o tema é amplamente abordado e atualizado em Cuidados Paliativos na Emergência (Editora Manole), livro que acabamos de publicar e é voltado a profissionais de saúde.
Essa especialidade, que envolve médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais, ganha terreno e representatividade, tanto devido ao aumento da expectativa de vida da população como por conta do progresso da medicina, que proporciona maior tempo de vida àqueles com doenças crônicas — problemas cardiovasculares e pulmonares, distúrbios neurológicos, tumores, entre outras.
Com a Covid-19 fomos colocados frente a frente com a mortalidade e a fragilidade da vida (incluindo a nossa), o que gerou reflexão e talvez tenha acelerado o processo de entendimento sobre a importância dos cuidados paliativos, que já são recomendados por várias sociedades médicas, contemplando o controle dos sintomas, o trabalho em equipe, a incorporação dos valores do paciente e a boa comunicação entre os profissionais e as famílias como parte essencial do plano de tratamento.
Infelizmente, na realidade do sistema de saúde atual, quem deveria ter acesso aos cuidados paliativos acaba buscando atendimento de emergência em hospitais. E isso acontece diariamente. Existem dados que sugerem que até um terço das mortes que acontecem no pronto-atendimento são esperadas por serem consequência de uma doença grave em fase avançada.
Portanto, existe um grupo identificável que merece uma abordagem diferenciada, mas não tem acesso a ela. Falamos de pessoas com insuficiência cardíaca grave e demências avançadas, entre outras patologias críticas, que chegam ao hospital com sintomas descontrolados e em grande sofrimento, sem consciência da gravidade da situação e sem nunca terem visto um médico de cuidados paliativos antes.
Uma nova filosofia, um novo tipo de cuidado
Aprendemos a medicina como ciência binária. Doença é igual a tratamento: pneumonia pressupõe antibiótico; insuficiência respiratória, intubação. A pessoa e sua individualidade parecem não fazer parte da equação. Somos treinados a intubar, mas não a avaliar os benefícios da intubação para um paciente de 90 anos, com um quadro clínico severo. O que esperar de uma terapia com antibióticos para aqueles em fase final? Ela melhora de fato os sintomas? Estou trazendo algum benefício ao transfundir? Hidratar?
São respostas a essas perguntas que as equipes de pronto-atendimento, emergência e terapia intensiva precisam buscar, sem perder o foco da subjetividade porque o melhor para um pode não ser o melhor para o outro, mesmo com igual diagnóstico. Cada um sente e reage de maneira distinta. Vejamos um exemplo: a esclerose lateral amiotrófica é uma doença que, com a progressão, pode submeter os acometidos a ficarem presos a um respirador até o fim da vida. Para alguns, essa dependência é pior do que a morte, enquanto outros se adaptam e relatam conformidade. A conclusão é que não há como fazer uma boa medicina sem saber quem é quem.
Quem é aquele paciente cujo diagnóstico é tão grave? É uma pessoa religiosa? Independente? Tem filhos? Quais são suas preocupações diante do fim inevitável? O que é prioridade para ele a partir daquele momento? O que é importante preservar? O que traz paz? Os cuidados paliativos têm uma premissa: conhecer ao máximo a pessoa, mesmo com todas as dificuldades que a situação impõe, para dispensar cuidados de forma efetiva e beneficente.
Profissionais de saúde devem saber avaliar a capacidade de decisão do doente, interpretar o que falam ou apurar junto aos familiares como o paciente gostaria de ser tratado diante do quadro clínico — se ele pudesse falar, como se manifestaria a respeito? Porque, mesmo quando essa pessoa não pode decidir, o foco ainda é ela. Seus valores devem ser levados em conta na tomada de decisões.
Nesse contexto, os cuidados paliativos humanizam a medicina e a relação médico-paciente na medida em que colocam de lado a obsessão pela cura e deixam emergir o foco na pessoa. Nem sempre, porém, isso significa adotar medidas prolongadoras de vida. Em contrapartida, certos procedimentos invasivos podem até não fazer muito sentido para o médico diante de um diagnóstico. Mas, quando há chance de sucesso para fazer com que um paciente viva mais seis meses e consiga seu objetivo de conhecer um neto que vai nascer (mesmo encarando eventuais desconfortos para chegar lá), esses métodos devem ser considerados.
Já tivemos casos emblemáticos no Hospital das Clínicas de São Paulo, como o de um interno admitido com dor oncológica de difícil controle e que obteve grande alívio simplesmente ao ouvir suas músicas favoritas no leito hospitalar. Em outra situação, um doente pulmonar grave arrancou o tubo que o ligava ao respirador e disse taxativamente que queria ir para casa passar os últimos dias com a filha.
Nossa função, como médicos que convivem com situações tão limítrofes, não é bater o pé e dizer: “paciente mau, recusou tratamento, não vou mais olhar pra você”, ou mesmo se esquivar de fornecer receitas e relatórios para “se defender”. Deixando de lado uma atitude paternalista, podemos optar por respeitar o desejo e a recusa de cumprir o protocolo, fazendo o possível para que a saída se realize com toda a segurança possível.
O olhar do profissional de saúde deve considerar o paciente de forma multidimensional porque seu sofrimento não se resume à dor física. Quando se descobre uma doença grave, além da agonia relacionada ao diagnóstico, existem outros padecimentos, como a perda do papel social e o medo de não ser mais capaz de sustentar a família, por exemplo. Da mesma forma, a amputação de uma perna ou braço irá gerar uma necessidade de readaptação que transcende o aspecto motor, com muito peso psicológico envolvido.
Caberá aos profissionais estarem devidamente preparados para identificar e acolher todas essas aflições, intervir para aliviá-las da melhor forma e, quando chegar o momento, identificar que o fim está próximo, reconhecer situações de refratariedade, fazer um excelente controle de sintomas e não prolongar de forma fútil o processo de morte.
Os cuidados paliativos não se encerram com o óbito. A comunicação de más notícias é outra habilidade essencial da área, que consiste em dar a pior informação da melhor maneira possível, enxergando aquela família com todas suas particularidades: são religiosos? Gostariam de um capelão para suporte espiritual ou de um psicólogo? Precisarão de ajuda para os trâmites legais? Qual é o local mais adequado para falar?
Sim, os cuidados paliativos são a ciência do detalhe. Uma mistura precisa de técnica e humanidade. Mas essa matéria a faculdade raramente ensina. Infelizmente, em muitas situações, ainda compete a quem abraçou a causa buscar capacitação para aprender a usar todas as ferramentas disponíveis da especialidade. O contraponto é muito compensador: ouvir o paciente, compreendê-lo e fazer o melhor para aliviar suas dores físicas e emocionais nos reconecta com a nossa opção pela medicina e traz a satisfação de exercermos o nosso melhor como profissionais de saúde e como seres humanos.
* Sabrina Corrêa da Costa Ribeiro é médica supervisora da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e coautora de Cuidados Paliativos na Emergência (Editora Manole), livro voltado a médicos e demais profissionais das equipes de emergência, terapia intensiva e cuidados paliativos
Cuidados paliativos: um jeito humano de assistir o paciente em sofrimento Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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