Em março de 2018, quando Stephen Hawking morreu, eu fui escalado – em parceria com outro repórter da SUPER, o Felipe Germano – para escrever uma matéria de capa sobre a vida e obra do astrofisico britânico. O Germano é especialista em cultura e ficou com a parte da vida. Eu, que sempre fui mais CDF, fiquei com parte da obra.
Logo percebi que Hawking era um ícone pop por causa da vida, e não da obra: suas contribuições à física de buracos negros são largamente ofuscadas por seu drama pessoal com a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), doença degenerativa que lhe custou praticamente todos os movimentos do corpo.
A resiliência de Hawking, o humor ácido, as declarações polêmicas sobre inteligência artificial e as aparições nos Simpsons e em Big Bang Theory o tornaram o protagonista perfeito para um filme – tão perfeito, de fato, que o filme já existia: lançado em 2014, A Teoria de Tudo tornou o britânico tão conhecido quanto seu conterrâneo Newton.
O longa não faz nem cócegas nas contribuições de Hawking à física teórica. Delas, a única que chega frequentemente ao público leigo é a radiação Hawking, um monumento da física teórica publicado em 1974, que ele aborda no clássivo livro de divulgação científica Uma Breve História do Tempo.
Resumidamente: trata-se de uma união inédita entre a mecânica quântica – que descreve o mundo microscópico – e os espaços-tempos curvos descritos pelas equações de Einstein. Hawking determinou que os buracos negros irradiam energia ao longo de períodos de tempo muito longos, “evaporando” até desaparecer. Não há espaço para uma apresentação didática do fenômeno neste textinho, mas vale a pena ler a explicação completa.
Muito antes dessa descoberta, Hawking já havia legado uma obra fundamental sobre aspectos da Relatividade Geral ainda mais inacessíveis ao público. Ele desenvolveu grande parte desse trabalho em parceira com Roger Penrose, que acaba de ganhar o Prêmio Nobel de Física de 2020.
“O trabalho dele e do Penrose andaram juntos”, diz o físico Juliano Neves, da UFABC. “Acho que Hawking teria ganho também.” Cecilia Chirenti, que é pesquisadora convidada na Nasa e sempre dá uma mãozinha para os repórteres da SUPER, faz coro: “Se o Hawking ainda estivesse vivo, eu acho que faria todo sentido ele ganhar o prêmio junto com o Penrose.”
(Antes de continuar, uma breve nota: só metade do Nobel de Física foi para Penrose. Os pesquisadores Reinhard Genzel e Andrea Ghez – que é apenas a quarta mulher a levar um Nobel de Física na história – ficaram cada um com um quarto do prêmio por descobrir que há um buraco negro supermassivo no centro da Via Láctea. Mas esse é um assunto para outro post.)
Os teoremas de singularidade
Vamos começar com uma explicação que eu não canso de dar na SUPER: Einstein concebeu o espaço e o tempo como uma espécie de tecido maleável que serve de palco para o Universo. As estrelas e planetas, por terem muita massa, afundam esse tecido de maneira análoga ao jeito como você afunda o colchão quando deita nele. Nós estamos presos à superfície da Terra porque estamos escorregando na depressão que ela forma no tecido do cosmo. O nome disso é gravidade.
Um objeto suficientemente denso, com muita massa concentrada em um espaço muito pequeno, gera uma vala pronunciada no espaço-tempo. Se esse objeto tiver densidade infinita – isto é, se toda a matéria que o compõe estiver espremida em um ponto de dimensões nulas, sem comprimento, largura ou altura –, ele é batizado de singularidade. Pode-se dizer, metaforicamente, que as singularidades “furam” o espaço-tempo.
Elas são entidades teóricas: seria impossível observá-las, já que nem a luz consegue escapar desses furos. Eis um buraco negro. Esqueça a ideia de que buracos negros são como aspiradores de pó: se você substituísse o Sol por um buraco negro de massa idêntica, as órbitas dos planetas manteriam-se idênticas, e sentiríamos falta apenas da luz (o que seria suficiente para extinguir toda a vida na Terra, é óbvio, mas não vamos entrar em méritos biológicos).
Você só fica preso na singularidade se cruzar uma espécie de perímetro de segurança em torno dela denominado horizonte de eventos. A partir dali, fugir é como nadar contra a corrente que leva a uma cachoeira: não importa o quanto você bata os braços para um lado, é impossível alcançar uma velocidade alta o suficiente para escapar da atração gravitacional, que puxa no sentido oposto.
Penrose e Hawking foram responsáveis pelos teoremas de singularidade – cujo trunfo é garantir que, dados certos parâmetros (chamados condições de energia), as singularidades são uma solução aceitável das equações da Relatividade Geral. Penrose fez a prova para os buracos negros; Hawking, para as singularidades cosmológicas – isto é: para singularidades em que o Universo todo se concentra em um ponto de densidade infinita. Em duas palavras: Big Bang.
Além dos teoremas, os dois fizeram muitos outros trabalhos ligados à geometria curva por trás da obra de Einstein, cujas regras são diferentes da geometria plana euclidiana, em que a soma dos quadrados dos catetos sempre dá o quadrado da hipotenusa. Eles se tornaram sinônimo do estudo de singularidades e do horizonte de eventos que as oculta. Conseguiram detalhar o bizarro comportamento do tempo e do espaço no interior dos buracos negros.
Hawking não estava aqui para ver a imagem de buraco negra gerada pelo telescópio EHT em 2019, que permitiu comprovar muitas das previsões que ele e sua dupla fizeram sobre esses estranhos objetos. Foram essas comprovações, no fundo, que justificaram as láureas concedidas a Penrose. A Academia Sueca sempre foi clara em seus critérios: o prêmio só sai quando há evidências empíricas. Isso torna Hawking uma espécie de ganhador póstumo do Nobel. Mais um quadro na galeria de gênios que mereciam o reconhecimento, mas ficaram sem ele.
Se Hawking estivesse vivo, poderia compartilhar o Nobel com Penrose Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
Nenhum comentário:
Postar um comentário