A Antártida é um ambiente de alto interesse para a ciência, devido suas condições climáticas e geográficas únicas (leia-se: um frio desgraçado e uma camada de gelo de 2 km de espessura). O Brasil, inclusive, inaugurou uma nova base científica lá recentemente. Agora, o continente inóspito se tornou palco de um mistério na Física. Tudo começou quando um equipamento da Nasa chamado Anita detectou partículas extremamente discretas, chamadas neutrinos, alcançando uma energia altíssima no céu antártico.
Só há um problema: o Anita compartilha espaço com um detector de neutrinos bem maior e mais abrangente chamado IceCube (você conhecerá melhor os dois nos próximos parágrafos). E o IceCube, curiosamente, não observou nenhum outro neutrino de alta energia na época em que o Anita realizou sua detecção.
Neutrinos costumam ser fabricados em grandes quantidades por fenômenos cósmicos violentos (como buracos negros), e alcançam a Terra após vários anos-luz de viagem. É muito estranho, portanto, que o pequeno Anita tenha detectado um neutrino sem que o IceCube detectasse dezenas de outros pertencentes ao mesmo “lote”, com características parecidas.
Talvez o Anita tenha dado sorte, e detectado um neutrino em um milhão. Mas a chance de isso ter acontecido é tão ínfima que os pesquisadores do IceCube começaram a especular se esse apressadinho de alta energia é mesmo um neutrino ou se ele não pode ser explicado pela física de partículas da maneira como ela está estruturada atualmente. Um artigo científico analisando o caso está disponível aqui, ainda em estágio de pré-publicação (isto é: não foi revisado por outros cientistas).
Partículas antissociais
Para começar a entender a história, precisamos conhecer os protagonistas dela. Neutrinos são partículas muito, muito pequenas. Na verdade, elas são as menores partículas conhecidas. Sua massa é 100 milhões de vezes menor que a do próton – uma das partículas que formam o núcleo dos átomos. Isso equivale a um bilionésimo de trilionésimo de trilionésimo de um grama.
Os neutrinos estão por todo lugar, literalmente. Bilhões e bilhões deles estão atravessando seu corpo — além de toda a Terra — enquanto você lê esse texto, muito provavelmente emitidos pelo nosso Sol. Apesar de muito abundantes, essas partículas são bastante antissociais. Por serem muito pequenos, os neutrinos fazem suas viagens pelo Universo sem quase nunca interagir com nenhuma outra partícula. Isso os torna basicamente indetectáveis — por isso, são conhecidos como “partículas fantasmas”.
O Modelo Padrão de partículas (o conjunto de teorias da física atual que explica todo esse mundo subatômico) prevê a existência de neutrinos de alta energia. Diferentemente do seus primos de baixa energia, essas partículas são mais raras, e também muito mais sociáveis. Isso porque, quanto maior a energia de um neutrino, maior a probabilidade dele interagir com algo em seu caminho.
Existem equipamentos específicos só para procurar por esses viajantes cósmicos. O principal deles é Observatório de Neutrinos IceCube, formado por mais de cinco mil sensores de luz enterrados no gelo da Antártida (conheça melhor o IceCube nesta matéria). Quando um neutrino de alta energia atravessa a Terra – às vezes vindo direto do céu, às vezes fazendo um caminho ousado em que entra pelo hemisfério Norte celeste e sai pelo polo Sul –, ele pode interagir com algum átomo do continente gelado, e essa interação é pega pelos sensores. Qualquer neutrino pode interagir, diga-se, mas os de alta energia são mais espalhafatosos.
O outro aparelho capaz de detectar esses neutrinos de alta energia é o Anita, da Nasa. Mas o Anita, que fica em um balão flutuante no céu gelado da Antártida, procura especificamente por neutrinos extremamente energéticos, centenas de vezes mais do que os detectados pelo IceCube. Eles são capazes inclusive de gerar sinais de rádio quando interagem com algum átomo no gelo antártico.
É aí que entra o mistério: desde 2016, o ANITA cumpriu seu trabalho e detectou, em três eventos diferentes, neutrinos de energia absurdamente alta saindo do solo da Antártida. O problema é que, como já dissemos, quanto mais energéticos são os neutrinos, maior é a probabilidade de que eles interajam com outras partículas em algum momento. Os neutrinos identificados vinham de um ângulo que indicava que eles haviam atravessado toda a Terra até saírem pela Antártida. Mas se isso tivesse acontecido, eles teriam parado dentro da Terra mesmo, muito antes de alcançar o detector.
É claro que não é impossível um neutrino muito espoleta cruzar o planeta despercebido. Mas para que um tivesse essa chance, muitos outros teriam que ter falhado na missão. E o que o IceCube indicava é que não havia essa turma toda. Nenhum outro neutrino de alta energia parecia ter bombardeado a região naquela época – só aqueles três, mesmo. E nenhum fenômeno cósmico no céu (como, digamos, um buraco negro supermassivo enfurecido com um enorme disco de acreção em seu entorno) parecia ter sido responsável por emiti-los.
Dessa forma, essas detecções não parecem fazer sentido segundo as regras da Física atual. E por isso surgiu um debate intenso entre físicos de todo o mundo. Alguns defendem que o que foi detectado é algo inédito, talvez um tipo de neutrino não previsto no Modelo Padrão de partículas. Outros, mais comedidos, tentam buscar explicações que não fujam do arcabouço atual. Uma nova geração de detectores talvez seja capaz de elucidar essa dúvida. Por enquanto, porém, nos resta teorizar.
Partículas “fantasma” de alta energia detectadas na Antártica desafiam físicos Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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