O brasileiro Miguel Nicolelis, de 59 anos, talvez não fosse hoje um dos mais respeitados neurocientistas do mundo se, na infância, não tivesse convivido com uma escritora de livros infantojuvenis, Giselda Laporta Nicolelis, hoje com 81 anos. “Ver minha mãe inventando histórias todos os dias estimulou minha criatividade”, revela.
Criatividade nunca faltou ao paulistano que já foi apontado pela revista Scientific American como um dos 20 cientistas mais influentes do planeta. Mas, no fim de 2015, ele esteve às voltas com um bloqueio criativo. Foi aí que, no Natal, ganhou da mãe uma edição do clássico A História da Arte, de Ernst Gombrich.
Era o que precisava para encontrar o fio da meada de seu novo livro, O Verdadeiro Criador de Tudo – Como o Cérebro Humano Esculpiu o Universo como Nós o Conhecemos (clique para ver e comprar), da Editora Crítica. “O cosmo é uma gigantesca massa de informação à espera de um observador inteligente o suficiente para conferir algum significado a toda essa vastidão”, filosofa o professor da Universidade Duke, nos Estados Unidos, onde atua desde 1994. Seu novo trabalho fecha uma trilogia que inclui Muito Além do Nosso Eu e Made in Macaíba.
Nesta entrevista exclusiva a VEJA SAÚDE, o neurocientista fala sobre sua obra mais recente, ideias e promessas para a saúde cerebral, negacionismo científico e “zumbis digitais”.
VEJA SAÚDE: Seu livro coloca o cérebro como o criador e o centro do universo humano. O que está por trás dessa ideia de “cerebrocentrismo”?
Miguel Nicolelis: Para fazer sentido, o Universo precisa ser interpretado de maneira inteligente. Toda e qualquer interpretação do Universo é guiada pela mente humana. Ou seja, são as características biológicas do nosso cérebro que geraram as interpretações que, por sua vez, construíram a narrativa do que está lá fora. E o que está lá fora, neste Universo de 13,8 bilhões de anos (estimativa humana, devo enfatizar), é inatingível. A gente nunca vai saber realmente o que é. A gente só tem acesso à versão do Universo criada pela mente.
Todas as abstrações usadas ao longo da história da humanidade como alicerces da civilização, como deuses, crenças e religiões, entre outras, são derivadas da mente humana. Às vezes, pensamos que essas abstrações são mais importantes do que a própria vida, mas, na realidade, são subprodutos do cérebro. Por essa razão, o cérebro é o verdadeiro criador de tudo.
Das abstrações criadas pela mente, o senhor considera duas um tanto perigosas: o culto ao mercado e às máquinas. Por quê?
O sistema financeiro e o tecnológico estão se fundindo numa coisa só. Mais que isso, estão se transformando numa entidade extremamente perigosa, que determina nossa vida. Hoje, cada vez mais, nossa vida é definida por algoritmos computacionais. São eles que determinam o que se pode ou não fazer. São eles que ditam o que é permitido ou não realizar.
A gente está vendo isso na pandemia, quando foi criada essa falsa dicotomia entre salvar vidas ou economia. Evidentemente, não existe economia sem vidas. Se você tiver um índice de mortalidade altíssimo, as economias não sobreviverão. A prioridade, portanto, é uma só: salvar vidas.
A pandemia também evidenciou outro fenômeno, o negacionismo científico. O que dizer dele?
Esse negacionismo é resultado de anos e anos de mensagens falsas transmitidas por meios de comunicação de massa. Recrutaram milhões de mentes ao redor do mundo, inclusive no Brasil, para a teoria de que tudo o que a ciência faz ou propõe é inexistente, é incorreto ou é perigoso. Chegamos a um ponto trágico.
Enfrentamos uma pandemia que paralisou o mundo inteiro. E nossa única esperança é a produção de uma vacina. E, mesmo assim, já existem movimentos nos Estados Unidos contra uma vacina que, por enquanto, nem sequer existe. Isso é chocante. Essas pessoas não só acreditam nisso como estão dispostas a defender suas ideias com violência.
Na obra, o senhor fala que a convivência constante com computadores pode até transformar as pessoas em “zumbis digitais”. Corremos o risco de nos desumanizar no futuro?
No futuro, não. Esse processo de desumanização já começou. A gente vê muito isso nas redes sociais, com a perda da empatia e da solidariedade. O fenômeno da plasticidade cerebral está levando a mente humana a ser moldada pela lógica digital. E a lógica digital está nos transformando em seres autômatos. A criatividade e a espontaneidade, entre outros atributos, estão sendo substituídas por comportamento de massa, ou comportamento de zumbi, como prefiro chamar. É a obediência cega a regras que não fazem sentido algum.
Acredita que a ciência poderá criar cérebros robóticos tão inteligentes quanto o nosso?
Não. Inclusive dedico dois capítulos do livro a refutar essa tese. Não existe a menor possibilidade de a mente humana ser replicada por sistemas digitais. A lógica do cérebro humano não é digital. É analógica. E sistemas analógicos não são passíveis de simulação com máquinas digitais.
E na existência de vida inteligente em outros planetas? Um dia seremos capazes de estabelecer contato com civilizações lá fora?
A possibilidade é real, mas a probabilidade é pequena. É difícil especular porque as distâncias que separam a Terra de outros planetas são enormes. Temos que ter uma revolução nos meios de transporte espacial para, um dia, começar a pensar nisso. Mas, de forma nenhuma, descarto a hipótese de existência de vida inteligente em outros planetas. O universo é muito grande. O número de planetas habitáveis é gigantesco.
O que podemos esperar da medicina e da neurociência pensando em casos de pessoas paraplégicas, com Parkinson ou Alzheimer?
No caso das lesões de medula espinhal, avançamos muito nos últimos anos. Vários grupos, inclusive o nosso, demonstraram que a interface entre cérebro e máquina pode levar à recuperação clínica do paciente e permitir a ele que readquira funções perdidas. Avançamos bastante e, acredito, vamos continuar avançando.
No caso do Parkinson, há possibilidade de aplicação das técnicas de estimulação da medula espinhal. Hoje, no mundo inteiro, há mais de 100 pacientes beneficiados por essa técnica. O Alzheimer é um pouco mais complicado porque estamos falando de morte neuronal. Mas tenho esperança de que, se não a cura, ainda veremos, pelo menos, novas terapias.
Seu livro compara o cérebro a uma orquestra. O que podemos fazer para que ela continue tocando em harmonia por muito tempo?
São múltiplos os cuidados que todos nós devemos ter: fazer exercícios, comer melhor, dormir bem… Quanto à mente, devemos exercitá-la. Mantê-la ativa, ocupada, desvendando mistérios. Precisamos buscar uma vida mais equilibrada. O estresse virou norma, algo cotidiano, na nossa forma de viver.
A pandemia nos obrigou a reaprender a contemplar a beleza e a simplicidade de certos componentes da nossa vida, que andavam meio esquecidos. Essa é a minha receita para ter vários anos de vida saudáveis e felizes. Não consigo dissociar saúde de felicidade. Uma pessoa saudável tem um grau de felicidade muito grande.
O senhor dedica a obra a seu pai, Ângelo, e cita sua mãe, Giselda, na introdução. Qual é a importância deles na sua formação?
Tanto eles quanto minha avó materna foram extremamente influentes. Nunca impuseram nada. Pelo contrário. Sempre me deram as condições necessárias para avançar. Sempre me deram liberdade para explorar toda e qualquer possibilidade. Subi degrau por degrau com as minhas próprias pernas. Essa foi a maior prova de amor que eles poderiam me dar. Sou eternamente grato.
O cérebro enquanto centro do nosso universo Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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