Foi em uma conversa na cozinha, entre os preparativos para a celebração do Ano-Novo judaico, que o professor de medicina Stephen Rennard, da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, teve a ideia de investigar os efeitos da canja de galinha. Sua esposa, Barbara, seguia os passos da receita da avó e recitava os apregoados benefícios do prato contra resfriados. Na panela, além da ave, borbulhavam cebola, batata-doce, cenoura, aipo, folhas de nabo e temperos. A fama dessa sopa é antiga e transpõe culturas. Curandeiros no século 12 já prescreviam aos doentes caldos de frango — que, muito tempo depois, foram até apelidados de penicilina, em referência ao primeiro dos antibióticos.
No laboratório especializado em doenças pulmonares do doutor Renard, ele e sua equipe botaram a canja à prova. E viram no microscópio, em experimentos com células, que o preparo e seus nutrientes conseguiram inibir os neutrófilos, um grupo celular do nosso sistema imune que fica nas alturas diante de uma infecção. Ao abrandá-los, a tendência é controlar a inflamação e atenuar sintomas como a moleza e a dor no corpo. “Mas não testamos tudo isso em pessoas”, adianta-se o pesquisador, cujos achados foram publicados no reputado periódico Chest. Ainda assim, é como se a sabedoria das avós começasse a ganhar a chancela da ciência.
Já se sabia que uma boa canja oferece uma porção de substâncias bem-vindas à imunidade, caso de proteínas, vitaminas, minerais e antioxidantes. Mas tem um ingrediente extra que pode até ser difícil de mensurar nos estudos: o bem-estar emocional desencadeado ao saborear o conteúdo da tigela fumegante, em geral na companhia da família.
Em artigo publicado na mesma revista científica, intitulado Sopa de Galinha em Tempos de Covid-19, Rennard destaca exatamente esse aspecto: “Feita em um processo demorado e amoroso, a receita pode fornecer verdadeiro apoio psicossocial”. Ele não deixa de sublinhar a necessidade de pesquisas rigorosas para comprovar os efeitos de qualquer solução destinada a melhorar a saúde ou nos defender durante a pandemia. A propósito, o professor argumenta que, sozinha, nenhuma sopa previne ou cura o problema. Mas, continua, “é importante reconhecer que o cuidado com doentes envolve mais do que remédios”. Sim, ele fala de carinho e interação social.
“Um prato de sopa traz conforto emocional, desencadeia sensações de prazer, de satisfação e de segurança”, concorda o nutricionista João Motarelli, da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp). Consumir um caldo que traga lembranças gostosas e alívio em meio à rotina ou a uma indisposição faz bem ao corpo e à mente — e não são poucas as evidências conectando o estado psicológico à imunidade e à propensão a diversas encrencas.
Uma típica canja traz arroz em sua fórmula e tem origem asiática. Há relatos de que surgiu na Índia e se resumia à mistura do cereal com água. Outros apontam para a China. Veio parar aqui com os portugueses e virou sucesso. Contam que dom Pedro II era um grande apreciador e que, por sua influência, a receita passou a figurar em menus finos com o nome de “Sopa do Imperador” ou “Canja à la Brésilienne”. Mas nem só de canja forramos a barriga e a alma.
Alguns historiadores afirmam que a sopa é o prato mais antigo de que se tem notícia. Teria surgido quando o homem das cavernas começou a misturar a água com vegetais em vasilhas de pedra. Com a descoberta do fogo, os preparos ganharam novos ingredientes e sabores… E avançaram pelo tempo e pelo espaço. A chef Giovana Nacaratto, curadora do Festival Comida de Feira, em Caruaru (PE), conta que a origem da gastronomia tem tudo a ver com sopas. “O nome ‘restaurante’ vem de certos caldos, que eram considerados restauradores”, explica. No século 18, alguns estabelecimentos vendiam tais refeições a fregueses que se sentiam debilitados.
O apelo saudável de cremes, caldos e sopas não perdeu a atualidade. Para Milza Moreira Lana, da Embrapa Hortaliças, em Brasília, eles representam uma senhora oportunidade de incluir mais verduras e legumes no dia a dia. “Vale experimentar ingredientes e temperos, sem medo de arriscar”, indica a pesquisadora, que faz parte do projeto Hortaliça Não É Só Salada. Caprichar no caldo que serve de base à receita é uma das primeiras lições a quem vai se aventurar. Tradicionalmente, aparecem como opções carcaças de aves, cabeças de peixes, pedaços de carne com osso e legumes. “E entram também os vegetais aromáticos, como cebola, cenoura, salsão, alho-poró e louro”, enumera o chef de Curitiba Ken Francis Kusayanagi, professor do Senac EAD.
Um truque para garantir sabor é mergulhar os ingredientes primeiro em água fria. Dessa maneira, o processo de desnaturação das proteínas ocorre mais vagoroso, o que resulta em líquidos mais ricos e gostosos. Alguns macetes culinários favorecem a biodisponibilidade dos nutrientes, ou seja, a absorção pelo nosso organismo. “Boas fontes de gordura, caso do azeite de oliva, melhoram o aproveitamento do licopeno vindo do tomate”, exemplifica a nutricionista Silvia Ramos, do Conselho Regional de Nutricionistas 3ª Região (CRN-3). Pura química.
É assim que aproveitamos também os efeitos dessas substâncias na redução do risco de doenças crônicas. E o que vale para o tomate vale para a cebola. A senhora dos anéis é estrela de uma sopa consagrada mundo afora. Reza a lenda que foi o sogro do rei francês Luís XV que criou a receita, uma das prediletas no Palácio de Versalhes. Não bastasse encantar o olfato e o paladar, a cebola oferece poderosos antioxidantes como a quercetina e os frutooligossacarídeos (FOS), um grupo de fibras que zela pela microbiota intestinal. Na forma clássica da culinária francesa, a preparação é coberta com queijo e levada ao forno para gratinar. É ou não é para degustar e se sentir feito majestade?!
Vanderli Marchiori, nutricionista e fundadora da Associação Paulista de Fitoterapia (Apfit), explica que, durante o preparo da sopa, alguns fitoquímicos da cebola (e de outras hortaliças) migram para o caldo. Na tigela ou no prato fundo, portanto, você não precisa se preocupar com as perdas. O calor do fogo faz com que parte da água do interior das células vegetais se converta em vapor e libere seus sucos e compostos benéficos. Se o cozimento for devagar, em panela tampada, além de manter os nutrientes, o sabor tende a ficar adocicado e suave. Quando a cebola é frita, por sua vez, suas proteínas e carboidratos interagem numa reação conhecida como de Maillard. O resultado é a coloração dourada e o gosto mais intenso. “Uma sugestão, inclusive para enriquecer e enfeitar outras receitas, é refogá-la rapidamente em azeite, junto do alho, e despejar por cima, bem na hora de servir”, dá a dica Vanderli.
Um ensinamento clássico dos chefs de cozinha é respeitar o tempo de cada ingrediente. Feijões e outras leguminosas, secos e duros, têm de ser cozidos primeiro; as verduras, molinhas, são postas por último. O corte dos alimentos também faz a diferença: pedaços grandalhões demoram a cozinhar, enquanto os miudinhos ficam macios rapidamente. Há quem defenda o mínimo de manipulação possível, mas cuidado com ideias radicais, por favor. A nutricionista Renata Guirau, do Oba Hortifruti, em São Paulo, recomenda picar os vegetais imediatamente antes de incluir na receita para inibir o processo de oxidação e minimizar prejuízos nutricionais. Também convém adicionar pouca água para cozinhar, uma vez que as hortaliças já são compostas de líquidos. O chuchu é o melhor exemplo.
“Há preparações que pedem consistência mais firme, especialmente nas receitas com origem na culinária asiática”, observa o professor Kusayanagi. Aliás, os japoneses são notáveis consumidores de sopas. Uma análise publicada no The Journal of Nutrition aponta um elo entre os hábitos alimentares e a longevidade na terra do sol nascente. Entre os destaques da culinária local, está o missoshiro, um caldo de peixe e algas com pasta de soja. Juliana Watanabe, chef e nutricionista da NutriOffice, na capital paulista, comenta que o padrão dietético japonês diminui o risco de doenças cardiovasculares. “Além disso, sua culinária é muito enraizada culturalmente, o que fortalece esse costume alimentar ao longo das gerações”, avalia. A sopa de missô frequenta o cardápio da nutri e traz os ensinamentos da batian, sua avó, que viveu até os 104 anos. “Ela incluía algas desidratadas, cenoura raladinha, tofu e acrescentava um ovo inteiro para cozinhar como pochet”, revela.
Para ser considerada refeição completa, a receita de sopa precisa ter uma proporção de nutrientes adequada. “Deve haver espaço para proteína, que pode ser tanto vegetal quanto animal”, ensina a nutricionista Lara Natacci, da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban). Carboidratos, vindos de grãos, tubérculos e raízes, não devem faltar, pois garantem energia ao corpo e dão consistência ao prato. Já azeite de oliva, castanhas e sementes oferecem uma dose de gordura da boa. E, claro, as hortaliças completam a fórmula com suas cores, fibras, vitaminas e minerais.
Expert em comportamento alimentar, Lara diz que não é raro seus pacientes comentarem que ficam com fome quando o jantar se resume a uma tigela de caldo de vegetais. “É que é essencial ter uma fonte proteica para atingir a sensação de saciedade”, reforça. Pode ser feijão, peixe, a galinha da canja… Dentro de um cardápio equilibrado, as sopas podem, inclusive, favorecer o controle do peso, como indica um estudo do British Journal of Nutrition. “Mas tudo depende da composição das receitas e dos hábitos como um todo”, pondera Lara.
Presentes em todas as culinárias, sopas podem servir a todos os gostos. Desde as primeiras papinhas do bebê até os jantares dos idosos. E por que se convencionou dizer por aí que elas se prestam mesmo a refeições noturnas? A pesquisadora Milza Lana conta que, certa vez, quando morava na Holanda, uma de suas anfitriãs estranhou esse hábito tão brasileiro. “Lá eles tomavam sopa no almoço e também em dias mais quentes”, lembra. Receitas frias, aliás, são muito populares na Europa. O gaspacho espanhol, que leva tomate, cebola e pão, é dos mais festejados. Há ainda a borscht, feita de beterrabas e originária do Leste Europeu, que também pode ser servida quente. Sem contar as refrescantes misturas de pepino com iogurte, que acalmam o estômago e esfriam a cabeça.
Independentemente da temperatura, o importante é lançar mão de ingredientes da melhor qualidade para extrair saúde e sabor. E o recado é o mesmo para quem vai usar as sobras de carnes, pescados e vegetais. Uma amostra de sucesso é o minestrone dos italianos, baseado em um mix de legumes. “Falamos de um preparo sustentável, que pode ser elaborado com aquilo de que dispomos na geladeira e na despensa. Basta usar a criatividade”, afirma Lara.
No século 21 de tanto prato pronto, Juliana Watanabe acredita que, com a (re)descoberta da cozinha, as pessoas precisam vencer o medo e a inércia e se arriscar. Inclusive com as especiarias. Já testou o gengibre, que casa tão bem com a abóbora e enriquece a receita com substâncias digestivas e que dão um chega pra lá nos enjoos? A mesma ousadia se aplica aos acompanhamentos. Ainda que o pão pareça o par perfeito ao creme de ervilha, há quem cubra o prato com pipocas, por exemplo. Além de dar um toque lúdico, elas contribuem com fibras, aliadas do funcionamento intestinal. Cogumelos do tipo shimeji também podem dar o ar da graça e, de quebra, nos presentear com lentinans, compostos parceiros do sistema imune.
Escarafunchar a riqueza culinária brasileira é outra boa pedida. “Que tal trocar a couve por taioba, vez ou outra?”, desafia Milza, citando uma folha do grupo das Pancs (plantas alimentícias não convencionais). Ou experimentar o tacacá, iguaria indígena feita de mandioca e jambu, espécie que causa dormência na boca. Sorver um copo de caldo de mocotó, que tem como matéria-prima o colágeno da pata do boi, é revigorante. “Muitos sertanejos têm o costume de tomá-lo após um dia de trabalho”, conta Giovana Nacaratto. “É como um abraço quentinho”, compara. Uma definição sob medida do que oferecem essa e tantas outras sopas.
Embora apresente algumas variações de ingredientes, a clássica sopa da vovó é sinônimo de aconchego. Confira a sugestão da nutricionista e chef Juliana Watanabe, de São Paulo:
Ingredientes
1 xícara de arroz (branco ou integral), lavado e escorrido
1/2 colher (sopa) de óleo vegetal
1 peito de frango
1 unidade de cebola picada
2 litros de caldo de frango ou de legumes
2 unidades de cenoura picadas
1 talo de salsão
2 colheres (sopa) de salsinha, picada
2 unidades de batata picadas
Sal e pimenta a gosto
2 unidades de tomate, sem pele e sem sementes (opcional)
Modo de preparo
Em uma panela, aqueça o óleo e refogue a cebola e o salsão. Acrescente o peito de frango e deixe dourar. Junte os tomates e cozinhe até que comecem a se desmanchar. Bote o caldo de frango ou de legumes, as cenouras e as batatas. Deixe cozinhar por cerca de 15 minutos. Adicione o arroz e deixe no fogo baixo por mais 15 minutos ou até que esteja cozido. Retire o peito de frango, espere esfriar um pouco e desfie-o. Agora coloque novamente o frango já desfiado e tempere com sal e pimenta-do-reino a gosto. Finalize com a salsinha picada. Sirva em seguida.
A versão clássica vem da França e leva queijo gratinado por cima. Experimente a criação do chef Ken Francis Kusayanagi, de Curitiba:
Ingredientes
500 gramas de cebola (ou 4 unidades), cortadas em tiras pequenas (corte julienne)
50 gramas de queijo gruyère ou parmesão
1,5 litro de caldo de frango ou legumes
6 colheres (sopa) de farinha de trigo
6 fatias de pão (ou em formato de croûton)
100 gramas de manteiga sem sal
Sal e pimenta a gosto
Modo de preparo
Em uma panela de fundo grosso, derreta a manteiga e, depois, acrescente a cebola. Deixe dourar bem, sempre mexendo, até escurecer e começar a grudar na panela. Em seguida, coloque a farinha, misture e, por fim, adicione o caldo. Mexa para não empelotar, deixe levantar fervura branda, sempre cuidando para a farinha não aderir ao fundo. Adicione o sal e a pimenta-do-reino como preferir e sirva com o queijo e o pão para finalizar — também vale cortar o pão em cubinhos, em forma de croûtons. Uma ideia deliciosa é cobrir com o gruyère e levar ao forno para gratinar.
Não é preciso apreciar a receita oriental só no rodízio japonês. Dá pra fazer em casa, como ensina a nutricionista e chef Juliana Watanabe:
Ingredientes
1/4 de xícara de chá (65 g) de missô (pasta de soja cozida e fermentada)
2 litros de água
200 gramas de tofu cortado em cubinhos
1 colher de sopa de wakame (alga desidratada)
1 envelope (10 gramas) de dashi (tempero japonês à base de peixe)
Cebolinha a gosto, cortada em rodelinhas finas
Modo de preparo
Em uma panela grande, ferva 2 litros de água com o dashi e o wakame. Acrescente o missô e mexa. Apague o fogo e sirva em tigelinhas individuais com tofu (o “queijo de soja”) cortado em cubinhos e cebolinha verde em rodelinhas finas. Quer incrementar? Você pode acrescentar um pouco de cenoura ralada, acelga ou repolho picado.
A cumbuca que enfeita e aquece bares e restaurantes brasileiros tem muita tradição. E você pode fazer uma versão mais saudável em casa — receita da chef Giovana Nacaratto, de Caruaru (PE):
Ingredientes
2 xícaras de feijão-preto ou de corda
2 unidades de cebola pequenas picadas
Ovo de codorna cozido a gosto
Óleo para refogar
1/2 unidade de pimenta dedo de moça, sem sementes
5 xícaras de água
5 dentes de alho pequenos picados
1/2 unidade de pimentão
150 gramas de charque dessalgada
Coentro a gosto
Milho cozido a gosto
Sal a gosto
Folhas de louro a gosto
Modo de preparo
Deixe o feijão de molho por 12 horas e descarte a água. Cozinhe o feijão e a charque na pressão por 20 minutos com louro e água. Refogue em outra panela o alho, a cebola, a pimenta e o pimentão. Quando estiver bem caramelizado, acrescente o feijão cozido sem a charque. Deixe cozinhar por mais cinco minutos. Bata no liquidificador, volte tudo para a panela e cozinhe em fogo baixo. Desfie a charque, corte em pedaços pequenos e junte ao caldinho. Ajuste o sal e sirva com o ovo de codorna, o milho e o coentro.
A ciência da sopa Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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