sexta-feira, 7 de agosto de 2020

As tecnologias que revolucionam o Hospital das Clínicas de São Paulo

No filme O Terceiro Homem, de 1949, o ator e diretor americano Orson Welles (1915-1985) diz uma frase que é inesquecível: “Na Itália, por 30 anos, sob os Bórgias, tiveram guerra, terror, homicídio, sangue e produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, tiveram amor fraterno, 500 anos de democracia e paz e o que produziram? O relógio-cuco”. Na visão polêmica do cineasta, o mundo precisa de um pouco de caos para alcançar o progresso.

Guardadas as devidas proporções, vemos um fenômeno parecido acontecer agora, durante a pandemia de Covid-19: num cenário cheio de incertezas, a tecnologia vem ganhando espaço no dia a dia de clínicas e hospitais. Coisas que estavam paradas há anos, esperando algum regulamentação dos conselhos profissionais, foram adotadas da noite para o dia e mudam para sempre a forma como lidamos com a própria saúde. 

É óbvio que esse avanço não pode ser considerado um “lado bom da pandemia” — afinal, é impossível pensarmos em coisas positivas quando centenas de milhares de pessoas estão morrendo mundo afora. O ideal seria que ferramentas e dispositivos fossem adotados de forma orgânica, sem a urgência de um vírus mortal que queimasse etapas e resumisse discussões necessárias antes da adoção de uma tecnologia ou outra. 

Mas, pela própria necessidade da crise sanitária, o fenômeno está acontecendo em tempo real, quer queiramos ou não: muitos avanços que demorariam 5, 10, 15 anos para virarem realidade foram acelerados e já são testados nos pacientes internados agora mesmo. Um exemplo muito claro disso vem do Hospital das Clínicas de São Paulo, que se tornou o maior centro de atendimento da Covid-19 no país. 

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No ano passado, a instituição lançou o Distrito InovaHC, um espaço que abriga startups e laboratórios da área de saúde com o objetivo de incentivar a inovação e permitir que as ideias saiam da teoria e sejam aplicadas. O espaço já conta com grandes mantenedores, como as farmacêuticas AstraZeneca, Johnson&Johnson e Abbott e a seguradora Unimed. “O que queremos é que as iniciativas se transformem em produtos e, no atual cenário, fiquem como um legado da pandemia”, afirma o médico Giovanni Guido Cerri, presidente no InovaHC e professor do Instituto de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). 

Um primeiro exemplo desse desenvolvimento é um software que usa inteligência artificial para avaliar tomografias dos pulmões de pacientes com suspeita de Covid-19. “A plataforma recebeu 5 500 exames de mais de 40 hospitais diferentes”, calcula Cerri. O programa de computador, então, aprendeu a diferenciar as imagens que sinalizam um quadro infeccioso sério daquelas em que o agravamento da doença pode ser descartado. “Por meio desse projeto, é possível ter certeza sobre o diagnóstico e o tamanho do comprometimento pulmonar”, completa o especialista.

Num cenário em que tantos exames são necessários para decidir o que fazer com cada caso, a inteligência artificial desafoga o sistema e pode garantir mais certeza e confiança nos laudos que embasam as decisões clínicas. E essa ferramenta, claro, poderá ser usada no futuro em outros contextos. “Nada impede que ela seja aplicada, por exemplo, para avaliar um nódulo no pulmão em que há suspeita de câncer”, completa Cerri. 

A era dos robôs

Outra área que recebeu muitos investimentos desde que o coronavírus começou a tomar conta do pedaço foi a robótica. Afinal, vivemos uma realidade em que o contato próximo entre dois seres humanos representa um risco de contágio muito alto. Que dirá então os sujeitos que estão na linha de frente: médicos, fisioterapeutas, enfermeiros e profissionais de limpeza precisam estar próximos aos leitos e, por mais que usem todos os equipamentos de proteção e respeitem os protocolos de limpeza, estão sob perigo. 

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Para minimizar isso, as equipes do InovaHC desenvolveram robôs que auxiliam em algumas tarefas, como a manipulação de lixo e materiais contaminados. Desse modo, em vez de um funcionário precisar pegar aquilo com as mãos e levar até o ponto de descarte, a máquina realiza esse trabalho de maneira mecânica. Sim, não falamos de histórias de ficção científica: isso já está sendo aplicado no dia a dia do Hospital das Clínicas de São Paulo. 

“Outra frente dentro dessa área são os dispositivos que facilitam a comunicação com os pacientes”, lembra Cerri. Um aparelho com uma tela e acesso à internet permite que o indivíduo hospitalizado receba orientações da equipe que acompanha seu caso. Também é possível marcar conversas com os familiares e amigos para matar a saudade nesse período em que as visitas estão vedadas. 

Medicina à distância

O próprio aumento da demanda provocada pela Covid-19 exigiu que os robôs fossem recrutados para ajudar. O HC paulista saltou de 90 para 300 leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) nesse período. “Além disso,  a conectividade agiliza o monitoramento das pessoas internadas e torna todo o processo de administração de medicamentos, medidas de temperatura, frequência respiratória, pressão arterial e funcionamento de respiradores mais eficiente. Tudo é monitorado à distância, de forma online”, conta Cerri. 

E isso, claro, terá impactos muito grandes no futuro. Pensa na quantidade de gente que sofre de doenças crônicas, como asma, hipertensão e diabetes. Todos eles precisam ir com frequência ao médico para avaliar a progressão dos sintomas e a eficácia do tratamento adotado. Isso exige longos deslocamentos e um enorme desperdício de tempo no trânsito ou no transporte público. A pandemia mostrou que muitas dessas consultas poderão ser feitas à distância, com o auxílio de aplicativos de videochamada. Bem-vindos à era da telemedicina.

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Há muitos e muitos anos já se falava da possibilidade de utilizar a internet para conversas entre profissionais de saúde e a população. Lembro-me de ter participado de um congresso sobre esse tema na Faculdade de Medicina da USP lá em 2011, inclusive. Porém, pouca coisa evoluiu e se tornou oficial de lá pra cá. A bem da verdade, muitos médicos já mantinham contatos por telefone ou mensagens de WhatsApp com seus pacientes. Mas tudo era feito de forma improvidada, sem regulamentação. 

O próprio Conselho Federal de Medicina propôs algumas mudanças nas regras no ano passado, que passariam a permitir mais interações à distância. Porém, o projeto foi retirado após sofrer muita pressão de grupos contrários à ideia ou entidades que criticaram a falta de debate a respeito do assunto. Outros conselhos profissionais, como o de psicologia e de nutrição, já haviam criado regras mais sólidas que liberavam as teleconsultas diante de algumas condições.

Com o crescimento da pandemia no Brasil e no mundo, não teve jeito: a telemedicina foi aprovada (mesmo que de forma provisória). É difícil pensar que voltaremos a um estágio anterior e ultrapassado quando a Covid-19 passar para a história.  

Capacitação para quem está na linha de frente

Um quarto e último exemplo da adoção de tecnologias que vão revolucionar a saúde vem de uma parceria entre o Instituto do Coração (InCor), ligado ao Hospital das Clínicas, e a startup MedRoom. A proposta é utilizar a realidade virtual para realizar treinamentos com os profissionais que estão atendendo os casos de Covid-19 em São Paulo. 

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A MedRoom desenvolveu um corpo humano em 3D que pode ser “dissecado” com a ajuda de um óculos de realidade virtual e dois controles parecidos com joysticks de videogame. No início do ano, visitei a sede da empresa e testei a tecnologia: até para leigos no assunto (como eu), é fascinante analisar os órgãos e manipulá-los de forma tão fácil. Quando você veste todo o aparato, realmente fica com a sensação de que aquela parte do organismo está na sua frente de verdade. 

A parceria entre as duas instituições permitirá levar conhecimento para os funcionários de 20 hospitais. Médicos, enfermeiros e fisioterapeutas terão contato com novas informações e as melhores orientações para tratar diferentes casos de Covid-19. “Após ler o conteúdo disponível para computador e celular, eles farão simulações e treinamentos que permitirão que todos estejam mais preparados para as situações da vida real”, destaca Sandro Nhaia, co-fundador da MedRoom. 

“O recurso tecnológico permite gerar protocolos de atendimento e cria ambientes virtuais, com leitos de UTI e monitores. O aluno precisa tomar decisões e acompanha em tempo real como o quadro evolui de acordo com suas ações”, explica o pneumologista Carlos Carvalho, diretor do InCor. Todo o curso pode ser dado à distância, sem a necessidade de reunir instrutores e aprendizes numa mesma sala de aula, o que se traduz em menos risco de contágio para todos os envolvidos. 

Diante da urgência, inteligência artificial, robótica, realidade virtual e telemedicina se tornaram ferramentas que facilitam o trabalho das equipes de atendimento e, por consequência, salvam muitas vidas. É muito difícil, ou quase impossível, pensar num futuro onde elas não estejam presentes nos cuidados com a saúde. 


As tecnologias que revolucionam o Hospital das Clínicas de São Paulo Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br

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