por André Biernath, repórter e autor da atual reportagem de capa da Revista SAÚDE que conta a história de Frida
Uma das cenas mais vívidas de meus primeiros anos de vida aconteceu na casa de meus avós paternos. Eu tinha uns 4 anos e me sentia apertado para fazer xixi. A porta do banheiro estava trancada e, após tanto empurrar, consegui finalmente vencer o trinco e entrar no cômodo. Mas a cena que vi me deixou paralisado: minha avó Michelina estava tomando banho e, em seu peito, eu reparei a extensa cicatriz de uma cirurgia recém-realizada, que retirara um câncer junto de uma de suas mamas. Saí correndo assustado, enquanto ela ria, com a leveza de suas seis décadas de vida.
Poucos meses depois desse episódio, minha avó não suportou a doença que atinge 59 mil mulheres brasileiras todos os anos e mata 16 mil delas. Talvez, se o tumor tivesse sido detectado alguns anos depois, o tratamento seria completamente diferente: em poucas décadas, vimos uma verdadeira revolução no tratamento deles. As cirurgias se tornaram menos invasivas. Os remédios são mais efetivos, com o benefício extra de menores efeitos colaterais. Há uma preocupação cada vez maior não só com o ataque a uma doença, mas ao bem-estar do paciente.
Mas por que recordo essa história aqui? Primeiro, para lembrar que nossa vida é finita. Segundo, para fazer uma justa homenagem à Elfriede Galera, ou simplesmente Frida. Há poucas semanas, nós conversamos longamente sobre sua trajetória tão inspiradora: ela descobriu há nove anos um câncer de mama avançado, com metástase em três órgãos. Desde então, vinha enfrentando a doença com a cabeça erguida e muita força de vontade.
Vi a Frida pela primeira vez no programa “Conversa com Bial”, na Rede Globo. Pouco tempo depois, por coincidência, estive num evento em que ela foi uma das palestrantes. Ela tinha uma personalidade única. Parecia um imã capaz de atrair, inspirar, encorajar e empoderar as pessoas que travavam algum tipo de contato com ela. Virou símbolo e exemplo de uma luta pelos direitos do paciente e pela vontade de viver.
Frida não se limitou a fazer a quimioterapia e os demais tratamentos que o médico recomendou. Com muita garra, foi atrás de estudos clínicos que testavam novos remédios e foi voluntária para ver se eles realmente funcionavam. Criou um instituto que levava mulheres com câncer de mama para velejar por um dia na represa ou no mar aberto. Disponibilizava um serviço de Whatsapp para conversar e tirar dúvidas de filhos cujos pais estavam passando pela mesma situação dela. A mulher era realmente incansável.
Com uma história tão bonita, Frida foi o primeiro nome em que pensei para sugerir como modelo da atual capa da Revista SAÚDE. Com a chamada “A Vida Vence o Câncer”, a reportagem tenta retratar esse movimento revolucionário que ocorre atualmente na oncologia: mais do que tratar uma doença, é preciso cuidar de um ser humano que está por trás de tudo aquilo, com suas aflições e vontades.
Lógico que no primeiro convite ela já topou ser o símbolo dessa mudança. Ninguém mais faria esse papel com tanta maestria. Na sessão de fotos, ela emocionou fotógrafos, produtores e designers ao dividir sua história de um jeito tão delicado e alegre.
No finalzinho de nosso bate-papo, que aconteceu no dia 19 de junho, há pouco mais de um mês, ela falou sem tabus sobre a morte. “Quando meu organismo não suportar mais as drogas, é hora de parar e morrer. Eu sou consciente disso e respeito os limites do meu corpo”. Esse momento chegou na tarde de ontem, dia 30 de julho de 2019.
Senhora de si, Frida determinou a sua trajetória e morreu no Hospital Pérola Byington, em São Paulo, como desejava: sem dor e respeitando seus próprios limites. Seu marido, Jadyr Galera, comunicou seu falecimento pelas redes sociais. Ficam aqui as condolências e abraços meus e de toda a equipe da revista.
Mais que o devido respeito nesse momento de perda de uma figura tão singular, gostaria de fazer uma justa homenagem. Frida, nós deixamos aqui nosso agradecimento por você ter mostrado a todos que o câncer não é esse bicho de sete cabeças. Que, junto com os profissionais de saúde, nós somos capazes de enfrentá-lo e viver uma vida boa, ao lado de quem a gente ama de verdade. Que é possível adaptar os sonhos e seguir em frente. Que é preciso ter leveza, sem medo de enfrentar barreiras e tabus. Que sempre é possível vencer o câncer.
Obrigado por tudo. E que todos nós sejamos mais Frida em nossas vidas.
Obrigado, Frida! Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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