Quem vive num mundo como o nosso, onde há mais gente morrendo por excesso de comida do que por falta dela e no qual até os rincões mais miseráveis da África e da Índia já foram invadidos por smartphones, tem muita dificuldade de imaginar como se vivia meros 300 anos atrás. A característica mais importante das economias pré-modernas era a de que, em geral, não sobrava muita coisa depois que todo mundo comia – se e quando todo mundo conseguia comer, lógico.
Ok, grandes impérios, bem administrados, conseguiam produzir excedentes e usá-los para financiar obras literalmente faraônicas, como as pirâmides do Egito. Mas a coisa não ia muito além disso. Dava para pagar os pães e a cerveja que alimentavam aquele mundão de camponeses arrastando pedra na beira do Nilo, mas era muito raro que alguém conseguisse pensar em métodos mais rápidos e eficazes para assar pão ou produzir cerveja. A produtividade da economia, em outras palavras, quase nunca aumentava.
As coisas começaram a mudar para valer a partir da segunda metade do século 18, quando o uso cada vez mais intenso da tecnologia para produzir bens (em especial a tecnologia das máquinas a vapor) permitiu que acontecessem duas coisas. Agora era muito mais rápido e barato produzir roupas, por exemplo. Ao mesmo tempo, o chamado acesso aos meios de produção – as máquinas que permitiam fabricar produtos desse jeito rápido e barato – tornou-se tão caro que só uns poucos caras cheios da grana podiam controlar a tal produção. O sujeito até podia tentar continuar usando seu lindo tear manual para fazer tecido em casa e vender de porta em porta, mas competir em preço com a nova fábrica movida a vapor? Nem sonhando. E, esmagado pela concorrência, lá se ia o coitado pedir emprego na tal fábrica.
É aqui que chegamos ao cerne da ideia de mais-valia, desenvolvida originalmente pelo pensador alemão Karl Marx (1818-1883). Nas novas condições do trabalho industrializado, o aumento brutal da eficiência da produção faz com que os operários consigam produzir bens com um valor econômico muito superior ao custo de contratar esses mesmos trabalhadores.
Uma conta hipotética é capaz de dar a dimensão disso de um jeito bem claro. Imagine que 50 operários conseguem produzir, num dia, 200 pares de sapatos (quatro pares de sapato por operário, o que é pouco, mas talvez estivesse no nível de produção do começo da era industrial). Esses sapatos custam R$ 10 para serem produzidos e são vendidos pela fábrica por R$ 20 para comerciantes da região. O lucro diário da fábrica é, portanto, de R$ 2.000; o mensal (assumindo que a fábrica nunca pare) é de R$ 60 mil. Se cada operário ganhar um salário de R$ 1.000, o gasto da fábrica com salários é R$ 50 mil. Os outros R$ 10 mil sobram na mão do dono.
Quem controla os meios de produção fica com a parte do leão dos lucros porque há essa “sobra”, essa capacidade de gerar valor que ultrapassa o que é pago ao trabalhador para realizar o serviço. Essa é a tal mais-valia, e com isso é possível quebrar a barreira invisível que mantinha as economias pré-modernas presas ao chão: o fato de que quase tudo o que era produzido acabava sendo consumido pelas necessidades de subsistência.
E, claro, de lá para cá, a eficiência tecnológica e logística que permitiu que a mais-valia decolasse como impulsionadora da economia só aumentou. É isso que explica a presença de smartphones e internet móvel nas favelas do Rio ou de Bangladesh ou o fato de que até as camadas mais humildes da população consomem carne em níveis inimagináveis para um camponês de Idade Média. É um aumento da prosperidade? É. Mas tem o outro lado. A mais-valia também descreve a exploração dos trabalhadores – que ganham o mínimo possível, e muitas vezes nem podem comprar o que produzem, enquanto os patrões ficam inimaginavelmente ricos. Marx achava que isso era insustentável, e o sistema capitalista acabaria se autodestruindo para dar lugar ao comunismo.
Entenda de uma vez: Mais-valia Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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