Da recusa a experimentar alimentos a comportamentos considerados inadequados durante as refeições, não faltam dúvidas e angústias entre as famílias a partir do momento em que é feita a transição do aleitamento materno exclusivo para a alimentação complementar e a introdução de novos ingredientes, texturas e sabores. É o que constata um levantamento realizado por VEJA SAÚDE, a área de Inteligência de Mercado do Grupo Abril e o apoio da Danone Nutricia com pais e cuidadores de crianças de até 10 anos com dificuldades alimentares.
Quase nove em cada dez entrevistados relatam entraves para fazer a garotada ter uma dieta variada e balanceada e consumir uma quantidade suficiente de frutas e hortaliças. São situações capazes de repercutir, tanto no curto como no longo prazo, no desenvolvimento físico, psicológico e social dos pequenos.
Para entender os reflexos desses problemas no cotidiano familiar e promover reflexões sobre possíveis soluções, a pesquisa ouviu mil mães e pais de todas as regiões do Brasil. Por meio de questionários respondidos pela internet, eles indicaram que, além da rejeição a conhecer e saborear novos alimentos (61% dos casos), atitudes como desinteresse pelo prato ou brincadeiras e distrações no momento da refeição figuram em cerca de 40% dos lares com crianças que apresentam dificuldades à mesa.
“Uma variedade de fatores, em geral interligados, pode afetar a relação com a comida na infância”, explica o pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Há casos em que a origem é orgânica e perdura, como distúrbios respiratórios que dificultam a mastigação e a deglutição, e outros mais pontuais, que, ainda assim, intimidam a criança diante do prato, como aftas”, exemplifica.
Mas há aspectos comportamentais envolvidos também. Segundo Fisberg, é natural uma recusa inicial em aceitar novos alimentos até que a criança se acostume com eles ou amadureça. “Mas chama a atenção na pesquisa que essa dificuldade chega a 66% entre crianças de 6 a 10 anos. Quando isso se intensifica e se torna crônico, pode comprometer o desenvolvimento infantil e toda a dinâmica familiar”, avalia.
Sinais de dificuldade alimentar
> A criança não ganha peso e altura de acordo com o esperado.
> Inapetência somada a agitação e distração ou, ao contrário, apatia e falta de interesse pela comida.
> Nas refeições, são constantes as reclamações sobre sabor, textura ou aparência do que
é oferecido.
> Crises de choro, birra e até episódios de vômito à mesa, sinalizando medo relacionado ao ato de comer.
> Seletividade: ela consome um número limitado de alimentos e/ou recusa certos grupos alimentares, como lácteos e vegetais.
> Rejeição persistente a experimentar novos alimentos ou tipos de preparo diferentes dos que são familiares.
O estudo da Abril confirma que, na ânsia de fazer a criança comer bem, muitos pais se rendem à barganha e oferecem compensações nem sempre saudáveis. “Também é comum proporcionar distrações, com TV ou tablets embalando o momento. Aos poucos a hora das refeições vira motivo de estresse e tensão, e isso vai se perpetuando”, descreve a nutricionista expert em infância Mariana del Bosco, de São Paulo.
A expectativa de ver o prato vazio gera frustração, já que quase 70% dos respondentes contam que o filho deixa de lado parte da comida. Segundo Mariana, a percepção dos pais é relevante na avaliação das dificuldades alimentares, mas ela ressalta que há uma fase na qual o decréscimo no consumo é esperado. Nos dois primeiros anos, o desenvolvimento da criança é acelerado. A partir daí, vem uma redução de ritmo e o apetite diminui. É também o período em que a seletividade dá as caras. “Aí as famílias passam a forçar a comer e isso vira uma bola de neve”, avisa.
Não raro, os conflitos gerados por essa situação respingam na vida social da família e, em um quarto dos casos, afetam até a vida conjugal. “É importante considerar também que a criança com dificuldade alimentar costuma ser estigmatizada, com consequências emocionais muitas vezes menosprezadas por pais e médicos”, ressalta o pediatra Carlos Alberto Nogueira, diretor do Departamento de Nutrologia Pediátrica da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran).
O embate cotidiano para fazer com que meninos e meninas tenham uma alimentação diversificada e equilibrada — desafio expresso por sete em cada dez participantes — ecoa no receio dos pais sobre os efeitos da má alimentação na saúde dos filhos. Eventuais prejuízos físicos e cognitivos ocasionados por déficits nutricionais preocupam boa parte da amostra. E, sinal dos tempos de pandemia, 86% relatam medo de que a dieta inadequada prejudique a imunidade.
Na visão de Mariana, quem acredita não ter controle sobre o que o filho come precisa refletir que ele não tem autonomia para ir ao mercado escolher só aquilo de que gosta. Os pais determinam o que servir e o horário e o clima em que isso acontece. E a criança decide quanto vai comer. “A família é o modelo nesse processo. Fica difícil ampliar o cardápio quando frutas e verduras não fazem parte dos pratos dos adultos da casa, como reconhecem 40% dos entrevistados”, analisa.
Só que essa conscientização esbarra em resistências dos próprios responsáveis: apenas 20% garantem ter alterado a alimentação da família após receber instruções do pediatra. “O acolhimento é o segredo para o engajamento. Não adianta o profissional de saúde dizer ‘Isso vai passar’ e dar uma orientação genérica”, pondera Nogueira.
A atenção do médico, aliás, é fundamental na identificação das dificuldades alimentares e no planejamento de estratégias para minimizar a relutância das crianças e ajudá-las a comer melhor. “A questão é que, durante sua formação, nem sempre o pediatra recebeu treinamento para diagnosticar e tratar esse tipo de problema”, afirma Fisberg.
Não por acaso, na sondagem, em 90% dos casos partiu dos pais a iniciativa de levantar o assunto durante a consulta. “Isso acontece porque, em geral, o profissional se concentra em dados como curva de crescimento, monitorando ganho de peso e estatura. Como não faz uma avaliação holística, as inadequações alimentares podem passar despercebidas”, completa. Menos de 40% dos respondentes dizem que o médico orienta satisfatoriamente a respeito da dieta.
Na busca por maneiras de contornar os desafios, muitos recorrem a pesquisas na internet. Redes sociais compõem mais de 30% das fontes de informação e algumas mães seguem recomendações de influenciadores digitais — nem todos com formação na área, é bom que se diga. “Só que as características e as origens das dificuldades alimentares variam muito. Então, uma recomendação benéfica para uns pode não se aplicar a outros. É como pegar a receita do vizinho e comprar um remédio para si próprio”, compara Fisberg, que também comanda o Centro de Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi/Hospital Infantil Sabará, em São Paulo.
A depender da complexidade do problema relacionado à alimentação, as soluções passam por ajustes na rotina, expedientes como oferecer o prato rejeitado outras vezes ou mudar sua forma de preparo e inclusive suplementação. E há circunstâncias que demandam uma abordagem multidisciplinar. “O pediatra vai garantir que a criança está crescendo e se desenvolvendo. O nutricionista avalia o consumo e propõe estratégias para ampliar a variedade de alimentos. Fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional ajudam a trabalhar questões de sensibilidade, ligadas à textura dos ingredientes”, lista Mariana.
Conhecer a história alimentar dos pais também conta nessa receita. “Muitos não tiveram uma relação boa com a comida na infância e precisam ser encorajados a testar outros caminhos com os filhos”, propõe a nutricionista. Trata-se, enfim, de um processo que não se encerra numa consulta. O plano de superação exige olhar atento, conscientização e engajamento tanto do entorno familiar quanto dos profissionais de saúde. Com essa rede de atenção, é possível melhorar hábitos e promover momentos prazerosos à mesa, propiciando um desenvolvimento mais pleno e tranquilo às crianças.
Estratégias dos experts
> Servir as refeições em ambientes tranquilos e livres de distrações como TV, tablets e brinquedos.
> Oferecer outras vezes o que a criança se negou a comer. A rejeição tende a ser passageira e pontual.
> Ao apresentar novamente um item recusado, misturar a um ingrediente que a criança aceita bem: se gosta de ovo, a couve-flor vai na omelete, por exemplo.
> Incluir o filho em alguma etapa do preparo, seja na escolha na feira, seja na hora de montar uma salada.
> Modificar o tipo de preparo, variar temperos e também a forma de servir: numa colher, no copinho, no palitinho…
> Planejar o cardápio com itens que a criança come na boa, introduzindo variações aos poucos, para aplacar a ansiedade.
Seu filho come mal? Por dentro das dificuldades alimentares na infância Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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