No finalzinho de fevereiro, uma notícia vinda do Japão causou temor: autoridades do país nipônico anunciaram que uma guia turística tinha se recuperado totalmente da Covid-19 e, dias depois, os sintomas retornaram. Exames mostraram que ela voltou a testar positivo para o coronavírus (Sars-CoV-2). Um episódio parecido aconteceu na Coreia do Sul.
Na China, onde a pandemia iniciou, os relatos são mais fortes: ao menos 100 indivíduos que se curaram da doença voltaram a apresentar resultados positivos para a presença dessa ameaça microscópica. Será que o corpo não cria imunidade contra esse vírus, o que favoreceria uma reinfecção?
A verdade é que o mundo está aprendendo dia após dia com o coronavírus. Compreender como os pacientes se comportam até a alta é uma das questões-chave dessa história, pois isso tem o potencial de modificar as políticas públicas adotadas até o momento.
De acordo com a evidência científica atual, a probabilidade de uma reinfecção é remota. Quem aposta nisso é o médico Anthony Fauci, líder da força-tarefa contra o coronavírus dos Estados Unidos e um dos maiores especialistas do mundo em doenças infecciosas.
Numa entrevista para o programa The Daily Show, do canal da televisão americana Comedy Central, ele afirmou: “Se esse vírus age como qualquer outro que conhecemos, uma vez que você é infectado e se recupera, cria uma imunidade que protege de futuras infecções por esse mesmo agente”.
Como explicar então esses casos na Ásia?
O coronavírus é uma família com vários integrantes. Alguns deles infectam humanos, como é o caso Sars-CoV-2, responsável pela pandemia atual. Outros preferem morcegos, bois ou galinhas. E a experiência mostra que essa turma têm a capacidade, sim, de atazanar o mesmo ser vivo mais de uma vez. “Reinfecções não são eventos tão raros entre os coronavírus”, observa o virologista Paulo Eduardo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo.
Por outro lado, segundo as pesquisas disponíveis, tudo leva a crer que esse risco de um bate e volta com o Sars-CoV-2 é bem baixo. Basta levar em conta que já são mais de 1 milhão de casos no mundo todo e ao redor de 100 relatos não confirmados de reinfecção em três países. “As análises também indicam que o novo coronavírus não possui uma alta taxa de mutações, o que certamente é importante”, acrescenta o imunologista Eduardo Finger, diretor do Laboratório de Pesquisa Experimental do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista.
Para entender direitinho porque a taxa de mutação dos vírus é relevante quando pensamos na criação de uma resposta imune sustentada, vamos usar como exemplo dois vilões muito comuns: o influenza e o sarampo.
Comecemos com o influenza, o causador da gripe: sabe-se que ele se modifica o tempo todo. Isso significa que nosso sistema de defesa perde a capacidade de reconhecê-lo com certa velocidade. Essa, aliás, é a razão de tomarmos a vacina contra a gripe todos os anos: os subtipos de influenza em circulação na nova temporada de frio costumam ser diferentes daqueles que pintaram no ano anterior.
A mesma coisa não acontece com o sarampo. Por ser um vírus mais estável, basta ter contato com ele uma vez (ou, de preferência, vacinar-se) para que o corpo o detecte e o ataque toda vez que o encontrar. Na maioria das vezes, duas doses do imunizante durante a infância são suficientes para oferecer proteção pelo resto da vida.
Outra possibilidade: uma interpretação inadequada dos exames
Talvez o que esteja sendo visto como reinfecção, na verdade, seja uma conclusão precipitada dos testes de diagnóstico da Covid-19. Um dos métodos mais utilizados hoje no mundo se chama PCR (sigla em inglês para reação em cadeia da polimerase). Essa técnica rastreia a presença de pequenos trechos do código genético do vírus em amostras de um paciente.
“Sabemos que pessoas que receberam alta após o tratamento para a Covid-19 continuam excretando pedaços do coronavírus, o que daria um resultado positivo num teste desses. Isso, por sua vez, poderia ser entendido como reinfecção quando, na verdade, trata-se de uma infecção primária que não se resolveu totalmente”, explica Brandão.
Que fique claro: o PCR é um dos melhores métodos de detecção. Ele é inclusive recomendado pela Organização Mundial da Saúde e pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos. O problema estaria na interpretação de seus resultados num contexto com milhares de pacientes em atendimento.
Reinfecção ou ainda em recuperação do coronavírus?
Uma terceira explicação para esses relatos nos três países orientais seria o fato de o paciente ainda não estar 100% recomposto da Covid-19 e receber alta antes da hora. Ora, após invadir as células superficiais da boca, dos olhos ou do nariz, o bendito Sars-CoV-2 pode descer pelo sistema respiratório até alcançar os pulmões.
Acontece que o teste de diagnóstico dessa infecção é feito com o auxílio de uma haste flexível com algodão na ponta. Essa ferramenta é introduzida pelo nariz até alcançar o comecinho da garganta. A ideia é esfregar o cotonete ali para retirar um pouco da mucosa, que será analisada no laboratório para ver se há coronavírus ou não no pedaço.
Algumas pessoas que estão se recuperando podem passar por esse exame e não apresentar vírus nessa região das vias aéreas superiores. Mas o agente infeccioso pode estar escondido mais pra baixo, lá nos pulmões. Com o resultado negativo, o sujeito é liberado da internação e, sem os cuidados com a saúde, volta a apresentar os sintomas, uma vez que a carga viral sobe de novo.
Seguindo essa linha de raciocínio, não estaríamos diante de um quadro de reinfecção, mas, sim, de uma doença que não foi devidamente tratada e curada.
Experiência com primatas
Um estudo realizado por um convênio de cientistas chineses acrescentou informações relevantes a essa história. Na experiência, quatro macacos rhesus foram infectados com o novo coronavírus e, após alguns dias, se recuperaram bem. Na sequência, eles tiveram contato novamente com o Sars-CoV-2: nenhum experimentou uma segunda infecção. Nem mesmo quando o vírus foi colocado diretamente no organismo desses primatas.
Apesar de interessante, o trabalho merece ressalvas. “Nós somos próximos de macacos, mas não somos macacos. Há uma série de doenças infecciosas em que o sistema imune deles age de uma maneira diferente do nosso”, pondera Finger. A exposição a um vírus no laboratório também não é a mesma coisa do contato natural, no dia a dia.
Se, por um lado, não dá pra levar as conclusões do trabalho a ferro e fogo, por outro ele aponta para uma luz no fim do túnel. “O experimento sinaliza que uma futura vacina poderá ser efetiva quando estiver disponível”, analisa Brandão.
O que se tira de lição dessa história?
Em primeiro lugar, vale reforçar que cientistas, médicos e autoridades em saúde pública estão aprendendo em tempo real a combater o coronavírus e seus estragos. Portanto, é natural que as recomendações se modifiquem conforme o conhecimento avança e novas peças desse intrincado quebra-cabeça são descobertas.
Caso o risco de reinfecção em larga escala seja verdadeiro e isso fique comprovado por estudos maiores e mais criteriosos (o que não aconteceu até agora), as políticas públicas colocadas em prática atualmente passarão por mudanças. “Esse cenário demandaria um número ainda maior de recursos diagnósticos e exigiria mais do sistema de saúde”, especula Brandão.
Por ora, as evidências indicam que a Covid-19 é mesmo uma doença que só se pega uma vez. O corpo parece que desenvolve, sim, uma memória imunológica para debelá-la caso o coronavírus tente uma segunda invasão. Em meio a um cenário tão desolador, eis ao menos uma boa notícia.
É possível pegar o coronavírus mais de uma vez? Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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