Não tinha como dar errado. No auge da Beatlemania, em 7 de julho de 1964, estreava o filme A Hard Day’s Night, dirigido por Richard Lester na esteira do sucesso de Summer Holiday (Peter Yates, 1963), com o astro pop Cliff Richard – outra comédia musical. O filme de Lester é rápido, juvenil, a cara do Free Cinema – o movimento cinematográfico moderno que estourou na Inglaterra no final da década de 1950. O público foi em peso às salas – os exibidores estavam em êxtase. E a primeira coisa que os espectadores ouviram foi o forte acorde de guitarra da abertura de “A Hard Day’s Night”, música que deu título ao filme. E também ao disco, catapultado pelo sucesso estrondoso nas telas. A música soou tão marcante aos ouvidos da época que também em 10 de julho saiu em single, paralelamente ao disco. Assim, bolsos de todos os tamanhos podiam levar algo novo dos Beatles para casa.
Composta por John Lennon, que faz a voz principal, além de tocar violão e guitarra base, a música deixa explícita a vertente mais pop (menos rhythm and blues) que será explorada pelo quarteto a partir daí. Talvez ela fique mais clara na terceira estrofe, quando a voz de Paul, predominante nesse trecho da música, soa como um contraponto suave à de Lennon, enquanto o cowbell e os bongôs de Ringo dão o toque de exotismo.
A parede de guitarra e violões formam uma espécie de “wall of sound” – a muralha sonora implantada por Phil Spector, muito antes do trabalho do produtor com a banda (que viria a acontecer só com Let It Be, de 1970). E o final, sugerido por George Martin, com a guitarra em arpejo de George Harrison e o fade out, antecipa o tipo de psicodelia que a banda abraçaria dois anos depois, em Revolver.
Mas voltemos a 1964 e à música mais emblemática que a banda compôs nesse ano. A ideia para o título (“Noite de um dia difícil”) surgiu de um dia duro de trabalho, quando Ringo, já prestes a capotar de cansaço, comentou que estava sendo “a hard day…”, olhou para a janela, viu que já estava escuro, e prontamente corrigiu “… night”. John achou a frase engraçada e a incluiu em seu livro In His Own Write (composto de contos e poemas). Richard Lester leu e gostou da ideia para o nome do filme. Então Lennon compôs a música, que seria a última da safra para a trilha sonora.
A letra, tola e eficiente como quase todas as outras do pop daquele momento, fala em trabalhar como um cachorro para conseguir dinheiro, e da compensação de ser tratado bem pela namorada ao chegar em casa. McCartney afirma ter colaborado na composição, provavelmente na parte em que faz a voz principal – porque John não alcançava as notas. Taí um ótimo exemplo de como um ajudava a melhorar as composições do outro, fazendo valer a assinatura conjunta.
O mesmo estilo de violão de “I’ll Be Back”, embora mais suave, menos percussivo, numa música anterior e mais famosa, composta para o filme A Hard Day’s Night. A canção aparece numa sequência em que John canta para Ringo num estúdio de TV, pois não havia cena de amor no roteiro. Lennon afirma que a compôs sozinho, enquanto McCartney defende que é uma composição dos dois.
A voz principal é de John, mas no refrão as duas vozes, dele com Paul, se juntam criando uma harmonia melancólica, em ligeiro contraste com o tom sacana, embora receoso, da letra, em que um homem pede à amante que o ame incondicionalmente – mas caso ele se separe da esposa. Espertinho.
A gaita e a voz dobrada de John Lennon são as marcas principais desta canção simples e direta, que caberia perfeitamente no álbum Please Please Me. É outra das músicas que John compôs sob influência do LP The Freewheelin’ Bob Dylan, que não saía de sua vitrola.
Composta por John e Paul para que George a cantasse, foi descrita por Paul como uma canção de fórmula, e por John como uma música que ele nunca cantaria. Sua melodia, contudo, merecia maior consideração da dupla de compositores, e o arranjo de guitarras tem valor evidente.
Um clima caribenho embala esta música romântica de Paul McCartney, em que John Lennon colaborou com a parte intermediária (“A love like ours, could never die…”). Feita provavelmente para sua namorada na época, Jane Asher – embora Paul afirme que não tinha ninguém em mente quando a escreveu (ahan…) –, “And I Love Her” mostrou o talento natural do Beatle para compor baladas sentimentais. Musicalmente, é uma das gravações mais sofisticadas da primeira fase da banda, com o vocal dobrado de Paul e a delicadeza nas mudanças de tom no dedilhar do violão de George Harrison. Não é à toa que demorou três dias para ser gravada. “Foi a primeira ‘Yesterday’ de Paul”, disse John – muito antes de começarem as batalhas de insultos entre os dois Beatles.
Esta é mais uma canção com voz duplicada em estúdio. Desta vez, a de Lennon, seu compositor. É uma das faixas mais rascantes do LP A Hard Day’s Night, cheia de guitarras e a voz rouca de John, em convivência harmoniosa com as de Paul e George. O produtor George Martin toca piano, numa linha de curiosa sinergia com o baixo de Paul. E John sublinha a semelhança com as canções de grupos vocais de garotas americanas, no estilo das Shirelles ou das Ronettes.
Outra das canções que mostram como era especial quando a dupla de compositores principais dos Beatles estava em total sintonia. Composta por John, teve a ajuda de Paul na parte instrumental, de incrível simplicidade, que introduz a última parte. Foi a última faixa gravada para A Hard Day’s Night. A curiosidade é que McCartney canta o segundo “any time at all” do refrão porque John não conseguia alcançar a nota certa.
No ritmo do country-rock, este é um chamado de desespero de John, que aprendeu com Bob Dylan a escrever letras mais confessionais, em que expunha seu medo de rejeição e até, neste caso, um desejo de vingança. A música foi composta para uma sequência específica do filme A Hard Day’s Night, mas o diretor Richard Lester preferiu usar “Can’t Buy Me Love”, de McCartney. No lançamento do filme em vídeo, “I’ll Cry Instead” foi incluída em um prólogo. Lester protestou e a música sumiu novamente.
Escolhida para lado B do single de “A Hard Day’s Night” na Inglaterra, é uma composição de McCartney que reflete as crises de seu relacionamento com Jane Asher – eles viviam um namoro de altos e baixos. Mais uma canção sobre as razões do coração. Paul e John eram jovens e lidavam pela primeira vez com o sucesso. Sobre o que mais poderiam compor?
A Hard Day’s Night é um álbum – e um filme – dominado por canções de John, compositor mais prolífico da banda naquele período. “Can’t Buy Me Love” é uma das três únicas com autoria de Paul – as outras são “And I Love Her” e “Things We Said Today” –, e a mais roqueira. Com melodia e arranjo que marcam pela simplicidade, Paul escancara sua influência de Little Richard enquanto George tem a oportunidade de um solo de violão no estilo de Carl Perkins.
Lançado antes do filme e do disco, foi o primeiro single dos Beatles em 1964, e ocupou o primeiro lugar nas paradas de diversos países, além da Inglaterra e dos EUA. No álbum anterior da banda, With the Beatles, eles gravaram um sucesso da Motown chamado “Money”, cuja letra dizia que o “dinheiro compra tudo”. Bem, para os Beatles, não podia comprar amor.
Por favor, deixem esse cara chegar em casa logo. A canção abre com um coro de gritos (“ouohaaa”), que dá lugar à voz rouca de Lennon e às coisas que ele tinha a dizer para sua namorada – e a fazer com ela – quando chegasse. É mais uma música com influência das Shirelles, girl group novaiorquino que Lennon amava. Está no lado B de A Hard Day’s Night, e foi gravada numa das últimas sessões para completar o disco. O que não significa que seja um simples tapa-buraco.
Lado B de “Can’t Buy Me Love”, esta penúltima faixa de A Hard Day’s Night desmente a ideia de que George Martin sempre colocava as mais fracas no fim do disco, antes de uma faixa que o encerrasse de forma grandiosa. Lennon a compôs num tom mais ameaçador do que o autopiedoso de costume, e se arrisca em um solo de guitarra sujo e simples, no lugar de George, o solista titular.
Os Fab Four podem não ter inventado esse tipo de levada dominada por acordes de violão tocados de modo percussivo (que seria seguido por bandas posteriores, como Electric Light Orchestra), mas certamente foram eles que deram sua feição definitiva. É o mesmo estilo que encontramos em “If I Fell”, deste mesmo disco. John Lennon compôs as duas canções.
Faixa de abertura de Beatles for Sale, segundo álbum da banda em 1964, é um pop simples na concepção, com palminhas e tudo, que remete ao material do ano anterior. Mas tinha como novidade algumas excentricidades da gravação – o forte bumbo sublinhando os momentos dramáticos, por exemplo. A autoria é de John, e o trabalho em estúdio tornou-a inesquecível.
Segunda faixa do LP Beatles for Sale, “I’m a Loser” foi composta por Lennon, no alvorecer de sua paixão pela música de Bob Dylan. John mostra um alcance vocal como nunca antes havia acontecido, com breve mudança de registro para o grave após uma rouquidão selvagem e chorosa no início.
É uma música sobre rejeição amorosa e hipocrisia, com backing vocals melódicos de Paul e a guitarra solo de George. Segundo McCartney, esse foi um chamado por ajuda de John. Foi o jornalista Kenneth Allsop que o aconselhou a soltar suas emoções nas letras. Ele estava certo.
A garota está de preto porque não é correspondida no amor. Esta faixa se destaca pela sofisticação das melodias vocais: Paul faz a mais alta e John, a mais baixa. Ambas gravadas no mesmo microfone, por insistência da dupla. É outro exemplo de intensa colaboração entre Lennon e McCartney, mas num ano em que isso tinha ficado menos frequente – eles já sabiam que as composições inacabadas de um seriam aprimoradas pelo outro. Não dependiam mais do olho no olho.
Escrita aos 16 anos, quando Paul já estava sob influência de Buddy Holly, chegou a entrar para o repertório dos Quarrymen – a primeira banda de que McCartney participou, liderada por John. O adolescente preferia seguir o sol quando a chuva se avizinhava, metáfora para sua autossuficiência no amor. É uma das três de Beatles for Sale que Paul compôs sozinho (com “What You’re Doing” e “Every Little Thing”).
Composição de Roy Lee Johnson, é uma das músicas que tiveram sua versão definitiva na execução dos Beatles – mas a original não é lá essas coisas, o que ajuda nesse conceito. John faz a voz principal, e inicia com um berro de tom lamentoso, que será continuado nos momentos em que canta solo. O órgão Hammond que predomina no instrumental é de Paul.
Os Beatles prestam tributo a um de seus maiores ídolos, Little Richard. O cantor e pianista americano imortalizou a canção de Jerry Leiber e Mike Stoller, gravada por muitos desde que foi composta, em 1952. A influência de Richard era maior em Paul, que canta a música num reforço a uma herança que já era óbvia.
Em A Hard Day’s Night não havia uma única música cantada por Ringo Starr, o Beatle da voz menos atraente. Em Beatles for Sale, coube a ele o vocal solo desta versão de uma composição de Carl Perkins, embora ela já tivesse sido cantada por John em shows. Ringo repete sua atitude brincalhona pedindo duas vezes o solo para George (“rock on, George, for Ringo, one time” na segunda vez).
Uma das raras canções dos Beatles em que o compositor não faz a voz principal. Paul a compôs para Jane Asher, mas é John quem a canta majoritariamente, em voz duplicada, cabendo a Paul a voz de harmonia no refrão. É mais uma letra que mostra a autossuficiência – e o egoísmo – do jovem Paul: cada pequena coisa que ela faz, ela faz para mim. O romance com Asher durou até 1968.
A canção foi inspirada por um motorista que levava Paul McCartney à casa de John Lennon. Ao ser perguntado se andava muito ocupado, o condutor respondeu: “eu trabalho oito dias por semana”. Nascia dessa maneira a canção que, décadas depois, em 2016, daria nome a um documentário do diretor Ron Howard (de Apollo 13 e Uma Mente Brilhante) sobre os incessantes shows da banda nos EUA, durante a Beatlemania.
Muitas vezes composições inteiras dos Beatles surgiam assim, apenas com uma ideia para o título. John e Paul cantam a música, embora a voz de Lennon sobressaia. Lançada como single somente nos EUA, a canção é um dos maiores sucessos da banda – presença constante nos shows atuais de McCartney. Entre as regravações mais destacadas estão a do Procol Harum (1975) e das Runaways (1978).
Escrita por Chuck Berry em 1957, é outra das covers mais celebradas dos Beatles, que só não fizeram a melhor versão dela porque era duro concorrer com o autor, um dos pais do rock’n’roll. Embora fizesse parte do repertório dos shows antigos da banda, eles só a gravaram em estúdio em outubro de 1964, para completar o álbum Beatles for Sale. Destaques para a voz energética de Lennon e para o piano tocado por George Martin à maneira de Jerry Lee Lewis.
Mais um country-rock de Lennon, esta música foi lançada como lado B do single de “Eight Days a Week”, e não dá para disfarçar: foi usada só para preencher o tempo do LP em Beatles for Sale. Considerada uma sequência de “I’ll Cry Instead”, de A Hard Day’s Night, também parece um preâmbulo para a mais bem-acabada “You’ve Got to Hide Your Love Away”, de Help!.
Das seis covers em Beatles for Sale, “Words of Love” é a melhor, embora pouco acrescente à versão original. Seu compositor, Buddy Holly, morreu em um acidente aéreo em 1959, com apenas 22 anos e no auge da fama. Esta versão aparece como uma tardia homenagem dos ingleses a um de seus maiores heróis. Paul e John cantam a melodia principal, e George se esmera em fazer um trabalho de guitarra bem fiel ao homenageado. A canção apareceu no primeiro disco solo de Buddy Holly, de 1958 – o artista já havia gravado um álbum, The Chirping Crickets, em 1957, com sua banda.
Os Crickets (“grilos”) eram uma inspiração para os Beatles (“besouros”) porque era um grupo que compunha boa parte de suas canções – como Lennon e McCartney queriam fazer. Buddy Holly logo prevaleceu como cantor e compositor principal (junto com o produtor Norman Petty), e os Crickets passaram a ser banda de apoio, sem o nome creditado na capa. Coisas da época.
Os Beatles adoravam Carl Perkins, que chegou a participar do disco Tug of War, de Paul McCartney, em 1982. Para o álbum Beatles for Sale, duas de suas músicas foram gravadas: “Honey Don’t”, cantada por Ringo Starr, e esta, um dos números constantes dos shows da banda, interpretada por George. Como Harrison era, na época, o maior fã de Perkins entre os membros da banda, a escolha para fazer a voz principal foi lógica.
Uma das poucas músicas escritas somente por McCartney em Beatles for Sale, é um exemplo da maestria de George Martin na gravação. O próprio Paul reconhece que a canção cresceu muito no estúdio, tendo sido um dos registros mais demorados do álbum. Vale destacar o trabalho vocal, que enriquece as rimas e a melodia, e a batida pesada no início e no fim.
Composta principalmente por McCartney, tem uma referência ao uso de drogas, que na época passou batida: “turn me on when I get lonely” (me deixa ligado quando estou sozinho), escrita poucas semanas depois que os Beatles conheceram maconha via Bob Dylan. Aqui Paul renova seu fervor pelo estilo incendiário de Little Richard, enquanto George Harrison e John Lennon pontuam com guitarras econômicas e Ringo Starr se diverte com um chocalho.
Mais um caso de aproveitamento de canção que estava na gaveta – Lennon a compôs antes de os Beatles existirem. Na gravação, John introduziu uma guitarra influenciada pelo blue beat jamaicano, e a parte instrumental do miolo da música soou como uma tentativa de ska, ritmo que só não se tornou a coqueluche do momento por causa da Beatlemania. A canção foi pensada como parte do filme A Hard Day’s Night, mas foi rejeitada pelo diretor Richard Lester.
Em 1964, Lennon ainda era lado A na maioria das vezes, McCartney era lado B. “I Feel Fine”, de John, foi lançada como single, tendo “She’s a Woman”, de Paul, no lado B. Ambas poderiam enriquecer o material de Beatles for Sale, no lugar de covers tapa-buraco, mas acabaram saindo em compacto, uma semana antes do álbum. Por isso, na Inglaterra, decidiram comercializar single e LP num único pacote.
“I Feel Fine” começa com uma nota forte de baixo, e uma microfonia se intromete até que a guitarra começa a delinear a melodia e a banda toda entra com peso. É um exemplo dos experimentos que a banda fazia nas gravações, incentivada por George Martin, que permitia ideias ousadas e até mesmo erros, como a microfonia – um descuido de John. Martin funcionava como um termômetro das maluquices juvenis dos Beatles. Ele controlava e burilava as invenções do grupo. Era de fato o quinto Beatle.
Mais um tributo da banda a Little Richard – um cara negro e bissexual que se tornaria um dos maiores nomes da primeira década do rock. A gravação original é de 1956, tendo chegado ao número um da parada de rhythm and blues da Billboard.
A versão dos Beatles abre um EP com o mesmo nome – EP era um produto com quatro faixas, intermediário entre o single e o álbum –, lançado em junho de 1964. Esse disco só tinha uma canção de Lennon e McCartney, o resto era cover. George Martin emula o piano agressivo de Little Richard e Paul aproveita para imitar seu ídolo no vocal.
Cantada por John, não deu muito certo. Ian MacDonald, autor de Revolution in the Head, aponta que Starr perde o tempo da música, “o solo de guitarra é embaraçoso, e o equilíbrio do som é uma bagunça”. A composição é de Larry Williams, de “Dizzy Miss Lizzy”, que a banda gravaria com maior sucesso.
Este rockabilly é a primeira cover de Carl Perkins cantada por Ringo, já que “Honey Don’t” sairia depois, em Beatles for Sale. Mas “Matchbox” fazia parte do repertório da banda em shows desde 1961, e quem cantava era Pete Best. Com a substituição por Starr, o grupo decidiu manter o vocal sob a responsabilidade de um baterista.
1964: o ano em que nasceu a beatlemania Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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