quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Manter o horário de verão não faz sentido. Mas faz.

A noite era diferente na Idade Média. Os camponeses adormeciam pouco depois do pôr do sol. Entre meia-noite e duas da madrugada, então, despertavam por duas horas: comiam, transavam, meditavam sobre seus sonhos e faziam orações (havia rezas compostas especificamente para esse interlúdio da madrugada). Então deitavam para um segundo round, de umas quatro horas – e se levantavam com o Sol, no dia seguinte. O historiador Roger Ekirch, da Universidade Estadual da Virgínia, nos EUA, pesquisou a noite do Ocidente pré-industrial por 16 anos, e compilou mais de 500 menções a esse sono em dois estágios, inclusive em Dom Quixote, de Cervantes. Era o jeito normal de dormir.

O sono segmentado foi desaparecendo lentamente na Europa do século 17, quando cidades como Paris e Amsterdã passaram a ter iluminação pública. Ficar acordado até tarde se tornou um hábito charmoso para a elite urbana. Quem chegava em casa na hora em que começaria o segundo sono acabava dormindo um sono só. Para os pobres, porém, a noite em dois capítulos só acabaria de vez com a Revolução Industrial, no século seguinte. Em cidades como Manchester e Liverpool, policiais ganhavam uma gorjeta para bater com bastões nas portas de cortiços e acordar os trabalhadores pela manhã. Nascia o despertador. Os ciclos da civilização foram desassociados dos ciclos astronômicos.

Foi nesse contexto, em 1784, que Benjamin Franklin se deu conta: há muita luz natural no começo da manhã, mas boa parte das pessoas está dormindo e não pode aproveitá-la. No fim do dia, porém, ficamos acordados por várias horas após o pôr do sol, queimando toneladas de velas para manter os cômodos iluminados – concluiu o herói da independência americana. Não seria eficaz do ponto de vista econômico, então, fazer o dia do relógio correr para trás em relação ao dia astronômico – transferindo, desta forma, a luz da manhã para a noite? Ele esboçou contas rápidas e calculou que, em Paris, 96 milhões de livres tournois (a moeda francesa da época) seriam economizados em cera de vela.

Em 1784, Benjamin Franklin calculou que adiantar os relógios no verão poderia gerar uma economia milionária em cera de vela.

A ideia ficou no ar. Em 1895, o biólogo neozelandês George Hudson formulou o horário de verão da maneira que conhecemos hoje – mas com um ajuste de duas horas. Ele queria mais tempo no fim da tarde para caçar insetos. Mas a ideia só sairia do papel na Alemanha, em 1916. O objetivo era desviar toda a energia possível do uso civil para o militar, por conta da 1ª Guerra Mundial, e outros países copiaram na hora. A adoção também foi ampla após a crise do petróleo, na década de 1970 – boa parte da energia elétrica, afinal, ainda vinha de geradores a diesel.

Alguns países acabaram abandonando a medida nas últimas décadas (como a China e a Rússia). Mesmo assim, 1,5 bilhão de pessoas, em 60% das nações, ainda passam por alguma forma de horário de verão. Os únicos que nunca instituíram a mudança são os próximos à linha do Equador – onde os dias e noites têm a mesma duração ao longo do ano todo. Até por isso a Região Norte do Brasil deixou de ter horário de verão em 1988, e a Nordeste (com exceção da Bahia no início), em 1991.

Agora, essa é a realidade do País todo. Você sabe: pela primeira vez desde 1985 não há horário de verão, por decreto presidencial. Jair Bolsonaro levou em consideração uma pesquisa do Ministério de Minas e Energia dizendo que 53% dos entrevistados se declararam insatisfeitos com a ideia de adiantar o relógio em uma hora.

Há mais argumentos contrários: dois pesquisadores da Universidade do Estado de Michigan, nos EUA, analisaram os 576 mil acidentes com operários reportados à Mine Safety and Health Administration (órgão que regula as condições de trabalho na mineração) entre 1983 e 2006. E descobriram o seguinte: há 3,6 vezes mais chances que a média de um trabalhador se ferir na segunda-feira após a mudança de horário. No escritório, ninguém se machuca – mas a falta de concentração se traduz em mais Instagram e menos trabalho. Perder uma hora de sono é dureza.

Um estudo de 2014 da Universidade de Colorado encontrou um aumento de 6,3% nos acidentes de carro nos seis primeiros dias após a mudança de horário, ao longo de dez anos. Outro estima que as vidas de 171 pedestres e 195 ocupantes de veículos seriam poupadas se não houvesse horário de verão. Derrames são 8% mais frequentes dois dias após o reajuste de relógios – entre idosos, 20%, entre pessoas com câncer, 25% (é sempre bom lembrar, porém, que correlação não implica causação).

Quem tem ar-condicionado em casa costuma deixá-lo ligado da meia-noite às sete da manhã nas noites de verão – justamente o horário em que, na época de Benjamin Franklin, ninguém acendia velas.

Mas e quanto ao principal – a economia de energia? Nada feito: de acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), desde a popularização do ar-condicionado, o pico de consumo de energia elétrica ocorre entre 14h e 15h, quando o dia está mais quente e há mais gente no escritório – e não entre 17h e 20h, quando a maioria chega em casa. Além disso, quem tem ar-condicionado em casa costuma deixá-lo ligado da meia-noite às sete da manhã nas noites de verão – justamente o horário em que, na época de Benjamin Franklin, ninguém acendia velas.

“Antes, o chuveiro era o vilão do setor elétrico. Hoje, é o ar-condicionado”, afirmou ao Estado de S. Paulo Nelson Leite, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Aneel). De fato, eventualmente o horário de verão piora a conta de luz: um estudo feito no Estado de Indiana, nos EUA, indicou um aumento de US$ 9 milhões no gasto dos consumidores – dá US$ 1,3 por habitante, mas ainda assim não se trata de uma economia.

Ou seja: o horário de verão, do ponto de vista técnico, não faz mais sentido. Adotá-lo se tornou uma questão cultural. Quem acorda muito cedo não gosta, quem chega em casa tarde gosta – e faz tempo que sabemos disso. No artigo científico em que justifica a implementação da medida, de 1895, George Hudson (o da Nova Zelândia) escreve o seguinte: “Um longo período de lazer à luz do dia passa a ser disponibilizado para críquete, jardinagem, ciclismo ou quaisquer outros passatempos desejados”. Se você é brasileiro, leia cerveja e futebol. Talvez seja simplesmente mais gostoso acabar o expediente sem a sensação de que, com ele, acabou o dia.


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