Um vírus que se transmite por gotículas de saliva começa a se espalhar em 2019. Ele causa febre, tosse e, em casos mais raros, pneumonia, podendo até levar à morte. Por incrível que pareça, não estamos falando do novo coronavírus, e sim de um inimigo que de novo não tem nada: o vírus do sarampo. Desde o ano passado, os casos da doença vem aumentando em diversas partes do mundo, especialmente em áreas mais pobres. E a pandemia de Covid-19 pode agravar ainda mais o problema.
O país mais afetado, de longe, é a República Democrática do Congo (RDC), na África Central (não confundir com a República do Congo, um país vizinho com nome quase igual). Por lá, mais de 6.500 crianças morreram vítimas da doença desde o começo do surto; o total de casos suspeitos chega a quase 530 mil, e acredita-se que há muitos mais que não estão sendo diagnosticados. A situação está tão grave que a Organização Mundial da Saúde (OMS) já considera o episódio como o maior surto de sarampo em um único país desde que a vacina contra o vírus foi inventada, em 1963.
O sarampo é um vírus extremamente contagioso – na verdade, o mais contagioso que se conhece. Seu número básico de reprodução (R0) fica entre 12 e 18. Isso significa que uma única pessoa pode infectar até outras 18 pessoas enquanto estiver doente. A gripe comum, por sua vez, tem um R0 de pouco mais de 1; o SARS-CoV-2, causador da Covid-19, tem algo entre 2 e 4, segundo estimativas iniciais.
Uma característica do vírus ajuda a explicar o porquê: o sarampo consegue se espalhar muito facilmente pelo ar, ficando horas suspensos em formato de aerosol e sendo levado pelos ventos. Isso significa que uma pessoa doente sequer tem que estar perto de outra para contaminá-la. Até onde se sabe, a Covid-19 se espalha principalmente por contato direto, sendo que o vírus é levado à boca ou ao nariz pelas mãos – embora evidências recentes indiquem que ele também pode, em menor grau, se espalhar pelo ar.
Além de contagioso, o vírus do sarampo também é extremamente mortal: sua letalidade média é estimada em cerca de 15%. Mas esse número varia muito dependendo das condições. Em países pobres, a taxa de letalidade fica entre 3 e 6%, mas pode chegar até 30% nos piores surtos, principalmente quando outros fatores, como desnutrição da população e sistemas de saúde frágeis, entram na conta. Em geral, as mortes ocorrem devido a complicações causadas pela doença, como pneumonia e diarreia. Crianças são especialmente afetadas e contabilizam a maior parte das vítimas fatais.
Uma doença tão contagiosa e tão letal parece um pesadelo para a humanidade. De fato, ela foi por muito tempo. Segundo o Centro de Controle de Doenças do Estados Unidos, quase todas as crianças contraia a doença nas décadas anteriores de 1960; a maioria sobreviva e criava imunidade, mas muitas morriam – entre 7 ou 8 milhões por ano, segundo estimativas. Por sorte, em 1963 criamos uma arma muito eficiente contra o sarampo: a vacina.
Felizmente, ela vem sendo aplicada em grande escala por todo o mundo nas últimas décadas. Por isso, a doença já chegou a ser considerada eliminada temporariamente (por períodos como um ano ou até uma década) em diversos locais em diferentes épocas, incluindo no Brasil. Mas não é tão fácil assim para outros países.
Para se evitar um surto de sarampo, calcula-se que cerca de 95% da população precisa estar vacinada contra o vírus. Países pobres como a República Democrática do Congo não possuem sistemas de saúde estruturados o bastante para garantir essa cobertura vacinal. A UNICEF calcula que, em 2018, apenas 57% das crianças do país tenham sido vacinadas – o que permitiu que o vírus se espalhasse rapidamente no ano seguinte.
Para piorar, a RDC enfrentou recentemente o segundo maior surto de ebola da história do planeta, que causou 2.200 mortes e só foi considerado controlado em março de 2020. Isso sem falar na febre amarela e na cólera, que também causam surtos relevantes na região e nunca chegam a sumir totalmente. E agora, com a Covid-19 se espalhando rapidamente no continente africano, o país terá ainda mais um problema de saúde pública para enfrentar.
A RDC até tenta combater a doença: promove campanhas de vacinação massiva a cada dois anos, mais ou menos, já que a taxa de natalidade do país é muito alta e todos os anos mais de 3 milhões de bebês nascem. Essas iniciativas contam, pelo menos em partes, com financiamento estrangeiro, porque, apesar de a vacina ser barata, o frágil governo não consegue arcar com tudo. Mas elas nem sempre são totalmente eficientes, seja por conta de logística (muitas crianças afetadas vivem em vilarejos remotos e longe das cidades), seja por corrupção dos agentes envolvidos no processo, seja por falta de profissionais de saúde e de postos preparados.
Em 2010, por exemplo, o governo simplesmente cancelou a campanha de vacinação porque não tinha dinheiro. Outras campanhas, na sequência, não atingiram o número mínimo de pessoas necessário para evitar surtos (a tal imunização de rebanho). Foi só em 2019, quando o país começou a registrar mais de 3 mil casos por semana, que uma vacinação mais ampla foi realizada, financiada por fundos internacionais e por outros países, segundo a revista Nature.
Problema internacional
Apesar da RDC chamar atenção devido ao tamanho do seu surto, não é o único país em que o vírus do sarampo volta a crescer. Na verdade, a doença aparece por aí de tempos em tempos em praticamente todos os países do mundo, mas raramente chega a causar epidemias maiores por conta da vacinação efetiva. Nos últimos anos, porém, o problema vem aumentando silenciosamente.
Segundo a OMS, 2019 foi o pior dos últimos 20 anos no quesito sarampo: embora não haja dados definitivos ainda, só os primeiros seis meses de 2019 foram mais letais que todos os anos desde 2006; as projeções apontam para cerca de 800 mil casos no total. Mas esse número deve ser muito maior, porque muitos casos acabam não sendo diagnosticados, especialmente em países pobres onde parte da população sequer chega a procurar assistência médica. Por isso, alguns especialistas estimam que houve 10 milhões de casos ano passado.
Alguns países concentram o grosso do problema. Madagascar, também na África, foi palco de um surto recente devido a falta de vacinas. Felizmente uma iniciativa de vacinação em massa, financiada por agentes internacionais, conseguiu frear a doença. Etiópia, Cazaquistão, Filipinas, Sudão, Tailândia, Quirguistão e Mianmar foram outras nações especialmente afetadas nos últimos anos.
Mas se você acha que o sarampo é uma exclusividade de países em desenvolvimento, está enganado. Um dos maiores surtos recentes aconteceu na Europa: na Ucrânia, mais especificamente. Por lá, o problema foi outro: não é que não há vacinas disponíveis; o que aconteceu foi que boa parte da população não tomou porque não quis. Isso nos leva a outro problema.
Segundo a agência Reuters, a misteriosa morte de um adolescente de 17 anos após tomar a vacina contra o sarampo, em 2008, começou uma onda de negacionismo na população. Investigações subsequentes não encontraram nenhuma ligação entre a vacina e a morte súbita do garoto, mas foi o suficiente para que teorias da conspiração começassem a se espalhar.
O movimento anti-vacinas cresceu no país, alimentado por boatos e fake news sem fundamento. O país chegou a registrar marchas organizadas contra leis que incentivavam a vacinação. Em 2018, apenas 50% dos ucranianos afirmaram confiar na eficácia de vacinas, segundo o instituto Wellcome Trust do Reino Unido. É um número bem abaixo dos 87% da média global. E tudo isso fez com que a cobertura vacinal contra o sarampo na Ucrânia caísse de 95% para apenas 31% em 2016, segundo a Nature.
O resultado de quando não se vacina uma população inteira só não é óbvio para os negacionistas. Em 2017, o país registrou um enorme surto de sarampo, que já afetou mais de 115 mil pessoas e corresponde a quase metade de todos os casos na Europa. Por sorte, a letalidade tem sido baixa, graças ao sistema de saúde do país, que é razoavelmente bem estruturado.
A Ucrânia não é a única vítima do Velho Mundo. Os casos de sarampo vem crescendo em outros países considerados ricos, principalmente por falta de vacinação voluntária. França, Estados Unidos, Israel, Grécia são alguns dos países que registraram surtos recentes, principalmente em populações específicas e concentradas, como comunidades religiosas que não se vacinam, por exemplo. E com isso, a esperança de se erradicar a doença no mundo – que não é tão utópica, já que uma vacina altamente eficaz e relativamente barata existe – se torna cada vez mais distante.
E no Brasil? Em 2017, registramos um total de 0 casos – motivo de orgulho diante o cenário internacional. Apenas um ano depois, em 2018, o número subiu para 10,3 mil casos confirmados. Em 2019, foram 18,2 mil. Os aumentos recentes nos tornaram destaque internacional – negativamente. O que explica isso é, novamente, a questão das vacinas: nossa cobertura foi de quase 100% nos anos 2000 para cerca de 90% agora, abaixo dos 95% necessários para se ter imunidade populacional.
Por aqui, a vacina é oferecida gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para todos os cidadãos, através da dose de tríplice viral, que protege também contra a caxumba e a rubéola. A recomendação é que as crianças tomem a primeira dose com um ano de idade, e a segunda dose com 15 meses. Adultos de até 29 anos devem tomar a segunda dose caso só tenha tomado uma na infância. Pessoas com mais de 29 anos devem tomar apenas uma dose.
Combo de vírus
Se a situação já estava ruim para o mundo antes, agora com a pandemia de Covid-19, tudo vai piorar. Para países pobres, as razões são claras: os pouco recursos terão que ser direcionados para dois problemas ao mesmo tempo, e, além de tudo, a ajuda internacional ficará mais difícil, já que os países ricos também estão tendo que lidar com a crise em seus próprios territórios.
Mas um outro fator afetará a todos: a OMS recomendou recentemente que todos os países parem campanhas de vacinação de todas as doenças. Isso porque essas campanhas inevitavelmente promovem aglomerações e contato social, e vão contra a ideia de isolamento social que está sendo adotada na maior parte do mundo como estratégia para combater o coronavírus.
Até o momento, 23 países já aderiram a recomendação, deixando mais de 78 milhões de crianças sem imunização não só contra o sarampo mas também para outras doenças infecciosas que podem ser previnidas, como poliomelite, meningite, HPV, febre amarela e cólera, por exemplo. Outros 16 países ainda estão decidindo se seguirão o mesmo caminho. Até agora, o Brasil segue com suas campanhas de vacinação normalmente.
A OMS admitiu que foi uma escolha difícil e que tratá consequências negativas para os países mais pobres, mas ressaltou que comunidades vulneráveis precisam ser protegidas da Covid-19. A recomendação é que as campanhas sejam retomadas imediatamente assim que a pandemia acabar, inclusive com mais investimentos e mais força.
Casos de sarampo disparam pelo mundo. E o coronavírus vai piorar tudo. Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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